TOP 10 Interpretações de Joaquin Phoenix
[tps_header]
Com “Nunca Estiveste Aqui” nos cinemas, é boa altura para refletir sobre a carreira da sua estrela, o singular Joaquin Phoenix, e ponderar sobre quais serão as suas melhores interpretações em cinema.
[/tps_header]
Ao longo da sua invejável carreira, Joaquin Phoenix já foi por três vezes nomeado para o Óscar e, no ano passado, conquistou o prémio para Melhor Interpretação Masculina no festival de cinema mais importante do mundo, Cannes. Se a reação do ator é de confiar, então ninguém ficou mais surpreendido com essa honra do que o próprio Phoenix que, não obstante as suas muitas nomeações para troféus reluzentes, raramente é galardoado pelos seus esforços.
A falta de Óscar e outros prémios não invalida, pois claro, a grandiosidade da filmografia de Phoenix ou a qualidade dos seus desempenhos. Em tempos, especialmente enquanto ator infantil, poderia parecer que Joaquin Phoenix estaria sempre na sombra do seu irmão mais velho, o lendário River Phoenix. No entanto, a morte trágica e muito prematura do ator de “A Caminho de Idaho” e “Conta Comigo” acabou por radicalmente mudar a situação. Passados uns anos depois do choque da morte do seu irmão, Joaquin Phoenix viria a chegar à ribalta, sendo nomeado para o seu primeiro Óscar pelo seu demente desempenho enquanto o imperador vilanesco de “Gladiador”.
No mesmo ano desse sucesso de Ridley Scott, Phoenix também trabalhou noutro filme que representou um marco importante na sua carreira. Referimo-nos a “Nas Teias da Corrupção”, onde o ator colaborou pela primeira vez com James Gray. Tal equipa viria a fazer mais três filmes, sendo que, para Gray, Phoenix tornou-se quase num ator fétiche. De facto, este quarteto fílmico representa algum do melhor trabalho dos dois cineastas e foi, com certeza, a qualidade das performances de Phoenix nestes projetos que acabou por lhe abrir as portas ao mundo do cinema de autor com propostas mais artisticamente rigorosas e arriscadas.
Afinal, da sua segunda prestação nomeada para o Óscar, por “Walk the Line”, até à terceira, em “O Mentor”, existe um salto de ambição desproporcional. De um docudrama biográfica extremamente convencional para um estudo de personagem elíptico assinado por Paul Thomas Anderson, há que reconhecer como Phoenix se tem mostrado cada vez mais disposto a desafiar-se a si mesmo. Depois desse filme, note-se que o ator voltou a trabalhar com Gray e Anderson, e colaborou pela primeira vez com Spike Jonze, Woody Allen e Lynne Ramsay, uma áurea lista de realizadores com estilos incrivelmente distintos.
Antes de começarmos a listar as dez escolhas para as melhores prestações deste extraordinário ator, convém referir duas especiais menções honrosas. Primeiro, temos o seu papel em “Vício Intrínseco”, onde o ator deu corpo e alma ao manifesto cómico do filme, mas acabou por cair no mesmo erro do seu realizador que, ao tentar construir uma atmosfera de incoerência deliberada, acabou por cair na indulgência da indisciplina. Enfim, o empenho de Phoenix é louvável, mesmo que os resultados não sejam perfeitos.
Igualmente louvável é a sua performance em “I’m Still Here”, um documentário falseado que acompanha como Phoenix supostamente abandonou a carreira de ator para tentar tornar-se num rapper. Sendo esta uma espécie de interpretação pública, com que o ator andou a enganar o mundo inteiro durante dois anos, existe uma qualidade meio inqualificável nos seus esforços. Pareceria injusto comparar diretamente a paródia autorreferencial de Phoenix neste “documentário” com os seus desempenhos em filmes abertamente narrativos, pelo que excluímos o projeto da nossa lista final.
Para descobrires qual é o nosso TOP 10 de melhores interpretações de Joaquin Phoenix, segue as setas.
10. A EMIGRANTE (2013) de James Gray
A maior parte da carreira de James Gray tem sido caracterizada por explorações meio arqueológicas, meio revisionistas, de géneros e estéticas típicas do cinema americano dos anos 70. Por norma, tal como essas obras do passado, tais projetos centram-se em homens solitários em momentos de ansiedade existencial. Em “A Emigrante”, o realizador alterou ligeiramente o seu modus operandi. Formalmente, o filme é típico da sua filmografia, mas, neste caso, o foco narrativo incide sobre uma figura feminina interpretada por Marion Cotillard. Ela é Ewa, uma polaca na Nova Iorque dos anos 20 que se vê vítima de uma série de desgraças, acabando por ser levada a prostituir-se pela influência de um proxeneta chamado Bruno.
Joaquin Phoenix dá vida a esse Mefistófeles do submundo nova-iorquino, pintando com largas pinceladas a sua podridão amoral e natureza cronicamente parasítica. O que surpreende no retrato que Phoenix faz deste homem é, contudo, a sua clara admiração por Ewa, sua paixão e veneração quase religiosa pela inocência manchada da mulher que ele mesmo parece dedicado a destruir. Há algo de grotesco no modo como Bruno parece ir encolhendo e vacilando sob o peso da sua culpa, mas é, ao mesmo tempo incapaz de agir de modo menos abusivo. Ele acaba por ser um homem que claramente tem nojo de si mesmo, especialmente pela sua incapacidade de fugir às palavras proféticas que Jeanne Moreau em tempos cantou para a câmara de Fassbinder: “Each man kills the thing he loves”.
No final, a prestação que Phoenix oferece ao espectador é algo deliberadamente repugnante, uma visão distorcida de ódio e obsessão em constante remoinho dentro da carcaça de um homem oleoso e desagradável. Por isso mesmo, este é um dos trabalhos mais polarizantes do ator, havendo muitos críticos que veem algo excessivo no grotesco de Phoenix ou então notam demasiada modernidade no seu estilo de atuação sussurrante. Face a Cotillard, que quase parece uma reincarnação de Maria Falconetti em “A Paixão de Joana d’Arc”, esse contraste estilístico é bastante óbvio, mas, neste díptico de humanidade em crise, tal incongruência parece-nos ser apropriada.
09. O HOMEM IRRACIONAL (2015) de Woody Allen
Woody Allen é um dos realizadores mais produtivos da atualidade, especialmente dentro do panorama mais rarefeito do cinema de autor, o que leva a que os seus numerosos projetos acabem por revelar níveis extremamente oscilantes de qualidade. “O Homem Irracional” é um dos pontos baixos na filmografia recente de Allen, mas, ao mesmo tempo, é um dos seus filmes mais fascinantes, em parte devido à fricção estabelecida entre as ideias basilares do projeto e as prestações de Emma Stone e Joaquin Phoenix nos papéis principais.
Aqui, Phoenix interpreta um homem que, a uma análise superficial, parece o prototípico protagonista de um filme de Woody Allen. Ele é Abe Lucas, um professor universitário de Filosofia que se envolve com uma das suas estudantes, na mesma medida em que se vai afundando num oceano de questões filosóficas com sabor a Dostoiévski. No entanto, entre colegas e estudantes, ele tem uma reputação que o faz parecer mais a um Ernest Hemingway das salas de aula do que um intelectual neurótico do Upper East Side, uma anomalia na oeuvre do realizador. Abe é ainda descrito como um homem profundamente misantrópico, quase niilista, com graves problemas com o álcool e portador de um carisma peculiar, mas isso não se traduz tanto num magnetismo erótico como numa espécie de distanciação desdenhosa.
Tudo isto Joaquin Phoenix leva da página ao ecrã com fidelidade, moldando os ditames do texto ao seu registo pseudorrealista do costume. Contudo, à medida que o enredo avança e se vai assumindo cada vez mais como uma reimaginação de “Crime e Castigo”, mais Phoenix se afasta do protagonista análogo a Woody Allen de que os filmes deste realizador estão infestados. De facto, Phoenix sublinha a arrogância elitista da sua personagem e a qualidade predatória da sua postura em relação à figura de Emma Stone e assim vai inadvertidamente reconstruindo o filme na forma de uma crítica ao cinema de Allen. Muitos dos aspetos deste desempenho não funcionam, especialmente a narração em voz-off, mas, nos seus melhores momentos, o trabalho de Phoenix é o tipo de esforço que faz de um ator o autor do filme ao mesmo nível que o seu realizador.
08. DISPOSTA A TUDO (1995) de Gus Van Sant
“Disposta a Tudo” é praticamente um filme que só existe para agraciar o mundo com a titânica prestação da sua protagonista. Aqui, Nicole Kidman é Suzanne Stone, uma mulher disposta a fazer tudo para ser famosa, inclusive eliminar qualquer obstáculo que se ponha entre ela e o seu objetivo. Infelizmente para o seu marido, os desejos de ter filhos com Suzanne e subsequente pressão para que esta ponha a carreira em segundo plano acabam por fazer dele um obstáculo a ser obliterado. Para esse efeito, ela manipula um grupo de adolescentes que andava a filmar para um documentário televisivo, acabando por levá-los a matar o esposo.
Joaquin Phoenix interpreta Jimmy Emmett, o principal alvo das manipulações de Suzanne e o rapaz que tem a infelicidade de cair numa paixão juvenil por essa perigosa mulher mais velha. Se Kidman engloba, no seu trabalho, todo o discurso crítico e estilização satírica que Gus van Sant edifica para este selvático ataque à obsessão americana com a validação da fama, Phoenix é a âncora que mantém o filme dentro do contexto da realidade humana. Por consequência, a sua interpretação tem de funcionar como uma contraposição à performance maníaca da protagonista e, no caso desse equilíbrio falhar, a conclusão do filme não teria qualquer peso dramático.
Nesse sentido, a prestação de Phoenix é essencial para o edifício fílmico, mesmo que seja muito menos vistosa que a dos outros atores. Ele efetivamente vende ao espectador a ideia de um adolescente perdido e sem rumo, que se agarra à primeira chance que tem de encontrar uma possibilidade de futuro com alguma felicidade, satisfação e companhia. Nos seus murmúrios, falas meio comidas por uma dicção desleixada e constante expressão apática, Phoenix traduz essa mesma condição perdida de Jimmy, mas não o torna numa figura alienante. Muito pelo contrário, enquanto espetadores, estamos sempre cientes da vulnerabilidade emocional do adolescente e, tal como Suzanne, entendemos como ele facilmente poderia ser levado a fazer loucuras se lhe oferecêssemos algum conforto. Por isso mesmo, apesar de estar inserida numa comédia satírica, esta é talvez uma das interpretações mais devastadoras do ator.
07. NAS TEIAS DA CORRUPÇÃO (2000) de James Gray
É interessante ponderar quão as duas personagens interpretadas por Joaquin Phoenix em filmes do ano 2000 se assemelham uma à outra. Tal como Commodus em “Gladiador”, Willie Gutierrez “Nas Teias da Corrupção” é um homem inarticulado que facilmente cai em epítetos de cólera vagamente adolescente e a quem dar qualquer tipo de poder ou autoridade é a receita perfeita para despoletar desnecessária violência. Ambos são homens patéticos que se veem a si mesmos como figuras merecedoras de respeito e ambos parecem incapazes de aceitar a rejeição sem reagirem com monstruosa agressividade. No entanto, enquanto Commodus é um imperador romano que Phoenix interpreta com descalabrado exagero e untuosa perfídia, Willie é um criminoso de segunda categoria a quem Phoenix dá vida com subtileza e um carisma tão surpreendente quão venenoso.
Esta foi a primeira das múltiplas colaborações entre James Gray e Joaquin Phoenix e é fácil entender por que razão esta equipa se veio a reunir em mais três projetos. Por simples palavras, Phoenix é perfeito para o tipo de exercício dramático e estético que Gray aqui faz, parecendo representar a continuidade do tipo de atuação feiamente realista que era tão popular nos drama nova-iorquinos da Nova Hollywood. Nessa época, seria fácil imaginar este mesmo papel a ser dado a John Cazale, mas, na alvorada do século XXI, é Phoenix quem toma as rédeas deste desafio interpretativo e fá-lo sem nunca vacilar ou mostrar sinais de esforço.
Na verdade, ele mais do que supera a hipotética genialidade dessa parelha de ator e papel que é Cazale e Willie, rendendo-se às partes mais obscuras da sua personagem sem nunca o tornar numa presença demasiado repugnante ou alienada. Phoenix balança as várias facetas da personagem e alcança um equilíbrio sublime entre a pequenez mesquinha, a sombra de um charme já há muito ausente e a cólera apaixonada de um homem que é incapaz de conter os seus impulsos mais animalescos quando é posto à prova. A sua cena final com Charlize Theron é especialmente memorável pelo modo como Phoenix retrata Willie como um jovem patético que consegue ser genuinamente assustador quando é confrontado com a impossibilidade de ter aquilo que quer.
06. LAR, DOCE LAR… ÀS VEZES (1989) de Ron Howard
“Lar, Doce Lar… Às Vezes”, também conhecido como “Parenthood”, é uma comédia cheia de grandes momentos, cuja grandeza é diluída pela mediocridade do seu todo. Mais especificamente, o filme segue o modelo de uma sitcom familiar, mas foca-se em três unidades domésticas da mesma família. Infelizmente, só uma dessas unidades representa um filme funcional enquanto as outras duas são pilhas de clichés e humor forçado sem piada. Enfim, quando é bom, este filme é estupendo, e, para a sorte do jovem Joaquin Phoenix (aqui com 14 anos e creditado como Leaf Phoenix), a sua personagem encontra-se no fio narrativo que funciona.
Ou talvez seja o filme que tem a sorte de ter Phoenix nesse terço, pois o ator é um dos grandes responsáveis pela qualidade desta parte do argumento, trazendo genuína humanidade a um texto cujas piadas fáceis são muitas vezes feitas à custa da integridade das personagens. De facto, é nas cenas entre Phoenix e Dianne Wiest, a interpretar a sua mãe divorciada, que o filme mais brilha. Aí, os atores conseguem delinear com elegante habilidade as fraturas, ressentimentos e palpável afeto que tanto unem como desunem esta família putativamente disfuncional. Nem se trata somente de uma situação de uma grande atriz mais velha a inspirar bom trabalho no seu colega inexperiente, pois Phoenix até maneja o milagre de tornar as suas cenas com Keanu Reeves em pequenas gemas de comédia sobre desconforto e vergonha adolescente.
Com isso dito, é impossível negar que o grande píncaro da interpretação de Phoenix é um momento sem pinta de humor e onde as reações de Wiest oferecem um perfeito contraponto à vulnerabilidade infantil do ator. Trata-se de um excruciante telefonema entre a personagem de Phoenix e seu pai desnaturado, um momento em que as ilusões infantis de um jovem rebelde que idealizava a figura paterna em detrimento da presença constante de sua mãe são rudemente estilhaçadas. No rescaldo da conversa, é impressionante ver o modo como o jovem ator tem a sagacidade emocional para ilustrar como a sua personagem anseia pelo conforto da mãe, mas está demasiado magoado e é demasiado orgulhoso para o desfrutar.
05. NÓS CONTROLAMOS A NOITE (2007) de James Gray
Se, em “Nas Teias de Corrupção”, Joaquin Phoenix interpretou uma espécie de eco moderno das figuras imortalizadas por John Cazale no grande ecrã, “Nós Controlamos a Noite” representa o momento em que o ator fez o mesmo em relação a Al Pacino. Mais especificamente, este é o Michael Corleone de Joaquin Phoenix, um homem de uma longa dinastia nova-iorquina que se envolve com o mundo do crime. Contudo, ao contrário de Michael Corleone, Robert ‘Bobby’ Green, o protagonista de “Nós Controlamos a Noite”, não vem de uma dinastia criminal, mas sim de uma família de polícias, no contexto da qual ele é uma ovelha negra devido ao seu trabalho enquanto proprietário de um clube noturno.
Se há algo que inicialmente surpreende na abordagem de Phoenix é o modo como ele pinta Bobby como uma figura ambivalente. Ele não odeia a sua família e reage com humor seco e resignado à sua constante desaprovação, mas também não tem afeto pelo mundo do crime, apenas tolera a sua existência. Tal condição afastada tanto da justiça como do crime não dura muito quando a polícia e a máfia russa se cruzam com consequências apocalípticas para o equilíbrio precário em que Bobby vive. De raiva, para com a interferência do seu irmão, a desespero, face às ameaças dos russos, Phoenix mostra perfeitamente como a sua personagem tem de lidar com o mundo em que vivia a desmoronar-se diante dos seus olhos, levando-o a tomar uma posição mais proativa, mas nunca nobre. Bobby não é, afinal, um herói valeroso, mas sim um homem que quer simplesmente viver sem problemas, uma mundanidade pessoal que o ator delineia com modesta elegância.
Uma grande ajuda para Phoenix é a qualidade do elenco em seu redor, onde ninguém, nem mesmo Eva Mendes ou Mark Whalberg, dá um passo em falso. As cenas partilhadas com Robert Duvall, no papel do pai de Bobby, são de particular destaque, pondo a nu as cicatrizes de uma vida de ressentimentos entre patriarca e filho rebelde, mas também o amor que um sente pelo outro. Essa integridade emocional é o fio condutor que leva ao final vingativo de “Nós Controlamos a Noite”, onde Phoenix dá vida a Bobby como um homem inebriado pela vontade de se vingar e anestesiado pela tristeza de ter perdido quase tudo que lhe dava razão para continuar a viver. “Nós Controlamos a Noite” é a tentativa de James Gray trazer uma tragédia clássica para o palco do realismo americano e sem a contribuição de Phoenix, tal exercício nunca teria resultado.
04. NUNCA ESTIVESTE AQUI (2017) de Lynne Ramsay
No panorama da crítica de artes performativas, em particular o cinema onde o realismo é um infeliz standard, existe uma tendência a valorizar exclusivamente os atores que mais nos conseguem transmitir a interioridade dos seus papéis, construindo personagens tridimensionais que, enquanto espectadores, conseguimos acreditar serem verdadeiras pessoas. Ao longo da sua carreira, Joaquin Phoenix certamente ganhou fama por trabalhos que caem nessa definição, sendo especialmente bom a traçar vulnerabilidade e projetar uma ideia de introspeção em papéis de homens violentos. Em “Nunca Estiveste Aqui”, contudo, o ator não cria uma personagem bem definida, parecendo mesmo estar a trabalhar com o intuito inverso. Ele esbate de tal modo a caracterização que esta desaparece e a sua figura se transmuta num vácuo de significado, um veículo pela qual Lynne Ramsay consegue orquestrar a sua facada sensorial na psique da audiência.
A auto-anulação diante das câmaras é algo tão ou mais difícil que a construção de uma personagem credível. Apesar das informações que o filme nos dá sobre a figura de Joe, um veterano de guerra traumatizado que agora trabalha como uma espécie de assassino contratado, ao longo do desenrolar da narrativa ele assume-se mais como uma presença física que psicológica. Essa faceta interior não marca presença na prestação de Phoenix, mas é, na verdade, integrada no formalismo extremo com que Ramsay construiu o seu drama hiperviolento. O resultado de tudo isto é a criação de um filme que dá a ideia de ser protagonizado por um espectro vivo, uma ideia mal lembrada de um homem que morreu no campo de batalha, mas cujo corpo robusto ainda serve como arma para quem o contrata ou como salvação para quem ele decide resguardar dos males do mundo.
O júri do Festival de Cannes de 2017 decidiu dar ao ator o prémio para Melhor Interpretação Masculina, reconhecendo assim a qualidade de um tipo de performance raramente celebrada ou explorada por atores de renome. Fazendo uma analogia literária, é como se a maioria dos atores e cineastas construísse as figuras humanas dos seus filmes como os protagonistas de longos trabalhos de prosa épica e concreta. Phoenix e Ramsay, pelo contrário, edificam uma proposta cinematográfica onde o ser humano no seu centro está mais próximo do sujeito abstrato de um poema sobre o modo como todo o mundo e seus horrores estão contidos na imagem de um feijão doce a ser esmagado entre os dedos de um homem cansado da vida.
03. UMA HISTÓRIA DE AMOR (2013) de Spike Jonze
“Uma História de Amor”, mais comummente conhecido como “Her”, parte de uma premissa futurista que pode, à primeira vista, parecer simples. Um homem que já sofreu sérios desgostos amorosos apaixona-se por um sistema operativo. Já muitos foram os projetos de ficção científica que se focaram na criação de laços afetivos entre homem e inteligência artificial, mas rara é a narrativa que de tal modo se invista na documentação de uma relação, seus limites e dinâmicas. Apesar disso, o que realmente faz do filme um enorme desafio para os seus atores é o facto de que a inteligência artificial se manifesta sempre de forma imaterial. Cabe assim ao ator a interpretar a figura humana telegrafar todo o processo de se apaixonar sem ter ninguém com quem contracenar e com a câmara sempre obsessivamente focada na sua reação.
É, portanto, necessário alguém capaz de sustentar todo o edifício do filme sem vacilar e, depois de uma carreira a interpretar criminosos, vagantes e ditadores emocionalmente analfabetos, Joaquin Phoenix não seria a escolha óbvia para tal exercício. Felizmente, Spike Jonze foi capaz de ver para além da superfície das performances passadas do ator e Phoenix não desiludiu, pegando na vulnerabilidade e melancolia que no passado pintaram o subtexto dos seus desempenhos e fazendo disso a inteireza do seu retrato deste homem chamado Theodore. Aliás, Phoenix é tão bom a telegrafar o processo de se apaixonar por uma entidade incorpórea e a conceber Theodore quer seja em voz, postura ou olhar que, mesmo antes das suas conclusões mais tristes, o filme é um objeto quase doloroso de confrontar. Face ao sorriso e expressão aberta de Theodore sentimo-nos como intrusos, voyeurs em violação da intimidade sacrossanta de um coração a render-se a outro.
De facto, Phoenix dá uma ideia de genuinidade que inocula o espectador de questionar as suas motivações ou a verdade das suas palavras quando este proclama o seu amor, ou chora pelas suas perdas. De todas as personagens de Phoenix, Theodore é mesmo aquela que melhor compreendemos, por muito mirabolante que seja a sua história. Simpatizamos com este homem que, depois de ter tido o seu coração partido não consegue confiar em pessoas da mesma maneira e que, quando é confrontado com uma entidade que o parece entender e querer agradar, se perde de amores por ela. Esta é uma prestação tão doce como frágil e, como o filme que habita, a sua sinceridade é tão calorosa que não nos apercebemos da facada sentimental que nos está a desferir até ser tarde demais.
02. O MENTOR (2012) de Paul Thomas Anderson
A prestação de Joaquin Phoenix em “O Mentor” é, de longe, o seu trabalho mais criticamente aclamado e muito provavelmente a escolha consensual para a sua melhor interpretação de sempre. Ao testemunhar o seu destemido feito dramático num dos filmes mais divisivos de Paul Thomas Anderson é fácil entender essa admiração generalizada. Para começar, no papel de Freddie Quell, um veterano alcoólico a sofrer as consequências fisiológicas e psicológicas de traumas incertos, Phoenix dá a sua prestação mais física. O modo como o ator se contorce, parece mirrar dentro de fatos demasiado grandes e transmite a imagem de um homem incapaz de se sentir confortável na sua própria pele é algo assustador, especialmente quando ele exacerba a qualidade grotesca dessa mesma expressão e transforma Freddie numa figura quase animalesca, motivado singularmente pelos seus instintos básicos.
Por muito vistosa que seja essa fisicalidade, nem é o elemento mais grotesco de Freddie, cuja falta de articulação verbal e constante tentativa de evitar falar sobre o seu passado o tornam numa figura quase espectral, um perpétuo errante sem rumo cujo único desejo é não ter de olhar para trás. Pelo menos, assim o é até se deparar com Lancaster Dodd, o pai da Cientologia, cujos métodos de doutrinação acabam por dar um sentido à existência sôfrega de Freddie. A cada revelação, a cada cena de “processamento”, vemos como Phoenix telegrafa a assimilação de informação por parte da sua personagem, testemunhamos em grandes planos violentamente próximos como as suas micro expressões materializam o turbilhão do pensamento e, acima de tudo, sentimos o desejo de pertencer a algo importante no desespero de um animal enjaulado que brilha no seu olhar.
Tal como muitas das interpretações mais vistosas de Phoenix, este é um trabalho que chama atenção para a técnica do ator e sua assombrosa imersão na psique perturbada da sua personagem. Contudo, longe de ser uma distração, essa qualidade performativa acaba por se fazer integrar de modo surpreendentemente orgânico na construção aqui arquitetada por Anderson, que raramente se focou de modo tão clínico nas minúcias mais pequenas das reações de seus interpretes. Mesmo sendo Freddie uma personagem enigmática cujo passado nunca nos é inteiramente revelado, Phoenix pinta aqui a imagem completa de um homem completamente destruído, violento e hediondo que necessita de algo a que se agarrar ou então não terá nenhuma razão para não caminhar para as ondas em busca de uma sepultura aquática.
01. DUPLO AMOR (2008) de James Gray
É preciso um grande ator para ter no seu currículo uma prestação ainda mais extraordinária que a de Joaquin Phoenix em “O Mentor”. No entanto, seria injusto não reconhecer a grandeza do que Phoenix alcançou em “Duplo Amor”, uma reinterpretação nova-iorquina de “As Noites Brancas” de Dostoiévski assinada por James Gray. Neste melodrama amoroso, ele dá vida a Leonard, um homem de uma família judaica de origem russa que, na primeira cena do filme, se tenta suicidar. Muitos outros atores, quando confrontados com tal extremo de desespero, facilmente pintariam Leonard com uma única tonalidade de tristeza, mas Phoenix evita tais simplismos e encontra universos de variação neste homem que, a certas alturas, parece ser acima de tudo incapaz de sentir o que quer que seja.
Por isso mesmo, há um certo humor presente quando ele se começa a apaixonar por uma vizinha interpretada por Gwyneth Paltrow, qual adolescente desajeitado que não sabe como lidar ou articular o que está a sentir. Phoenix, pela sua parte, faz a surpreendente escolha de interpretar tal obsessão e incapacidade juvenil com insuspeitos rasgos de humor, contribuindo para o mais delicado cocktail tonal tanto da sua carreira como da de Gray. Aliás, como que num presságio do calor humano que Phoenix viria a personificar em “Uma História de Amor”, o ator retrata o arco de Leonard através de uma abertura emocional, em que a personagem cabisbaixa parece florescer diante dos nossos olhos, pondo a nu o núcleo fragilizado da sua alma sedenta pelo amor de outrem.
De desespero total a humor juvenil e completa abertura emocional digna dos mais chorosos melodramas românticos, a prestação de Joaquin Phoenix é como uma montanha-russa, estando pejada de escolhas inesperadas. A certas alturas, a paixão “histriónica” de Leonard pode mesmo parecer tóxica e os usuais murmúrios de Phoenix quase sugerem a loucura, revelando como nem o realizador ou seu protagonista têm medo de iluminar as partes mais negras e abrasivas do herói fatalista. Nada disto resulta numa figura incoerente ora consigo mesmo ou com a lógica emocional do filme em que se encontra. Há muitos críticos que, quando discutem as melhores prestações de Isabelle Huppert usam o argumento de que mais nenhuma atriz conseguiria dar vida às suas personagens. O mesmo se pode dizer de Leonard, uma figura cuja existência no grande ecrã é impensável sem as escolhas arriscadas e devastador poder emocional que Joaquin Phoenix traz consigo para o seu melhor desempenho de sempre.
Concordas com as nossas escolhas? Se tens sugestões de outras grandes performances de Joaquin Phoenix ou queres referir outro ator ou atriz merecedores de um top 10 MHD, deixa a tua opinião nos comentários.