2019-05-11 Kamasi Washington

Kamasi Washington: um saxofone no céu, na terra e no LAV

Kamasi Washington trouxe uma noite inesquecível ao Lisboa ao Vivo, com o potente sopro das suas composições a vibrar no sentimento e experiência dos músicos.

Depois de uma semana chuvosa, Kamasi Washington veio a Portugal e com ele chegaram o sol e o calor. O artista norte-americano já tinha estado no Porto na sexta-feira, no Hard Club. No sábado, chegou a vez da capital. O músico e a sua banda atuaram num Lisboa ao Vivo, num concerto promovido pelo Gig Club, cheio de movimento por parte do público.

Lê Também:   Mês em Música | Playlist de Abril 2019

Pouco antes das 21h30, hora de início do concerto, quando já se tinha formado uma fila à porta da sala, um homem alto, forte, imponente, passava à frente de todos. A estrela entrava no LAV minutos antes da sua atuação, pela porta do público. Enganados por um tempo, descobrimos que a fila era para comprar bilhete, pelo que passámos nós também, deixando para trás os mortais. À Kamasi Washington.

Já lá dentro, a sala de simpático tamanho do LAV estava relativamente povoada. Junto ao palco, acumulara-se já logicamente uma boa quantidade de gente, bem como no primeiro andar. Ainda assim, não foram necessárias cotoveladas, acompanhadas de dissimulados, batoteiros ‘com licenças’, para conseguir um bom lugar. A sala foi enchendo e aquecendo. Ainda não estávamos no concerto propriamente dito e a plateia já se agitava com a música que ia passando enquanto esperávamos pelo início do espetáculo, que, escusado será dizer, não foi a horas.

Kamasi Washinghton
GIG CLUB presents: Kamasi Washington @ LAV, Lisboa, Portugal 2019.05.11
© André Henriques
www.facebook.com/ahphoto.portugal/
insta @ahphoto_gigs

Mais de um quarto de hora depois da hora marcada, o mesmo homem alto, forte e imponente entrava em palco com o seu saxofone e as típicas túnicas e vestes largas. Entrou também a banda: a vocalista, o teclista, o trombonista e os dois bateristas. Kamasi Washington começou por os apresentar a todos, apresentando-se a si próprio depois, dando início ao concerto. Assim que começaram a tocar, sentiu-se a força das composições de Kamasi. “Força” em todos os sentidos, a julgar pelo ligeiro entupimento dos ouvidos que veio com os altos níveis do som. Certamente alguém se esqueceu da sonoridade big band que caracteriza Washington e do que isso significa em termos de volume.

O último álbum de Kamasi Washington, Heaven and Earth, saiu no verão passado. Uma semana depois, veio o EP The Choice. Logicamente, o repertório do concerto ter-se-á maioritariamente debruçado sobre estes registos. E, de facto, a performance propriamente dita começou com o que me pareceu ser uma das faixas do LP, que depois terá seguido para uma improvisação. Neste género de composições é sempre muito difícil indicar com certeza de que canção se trata, se é que canção é o termo correto.

Durante o concerto, Kamasi Washington voltava a apresentar a banda à vez, dando-lhes espaço para brilhar com as suas improvisações. Os primeiros na lista foram o trombonista e o teclista. No entanto, o terceiro teve um lugar de destaque. O contrabaixista da banda fez a sala parar. Nos minutos que teve só para si, deu tudo em palco e convenceu-nos fortemente da sua proficiência com o instrumento. Não me é raro cruzar com contrabaixos e confesso que nunca vira nada assim. A rapidez dos pizzicatos e as rápidas mudanças de posição. Já no final do seu momento, pegou no arco e perdeu ligeiramente o encanto. Continuava petrificado, não obstante.

Kamasi Washinghton
GIG CLUB presents: Kamasi Washington @ LAV, Lisboa, Portugal 2019.05.11
© André Henriques
www.facebook.com/ahphoto.portugal/
insta @ahphoto_gigs

A meio do concerto, Kamasi anunciou que tinha uma surpresa muito especial para nós. O artista traria a palco “o homem que lhe ensinou tudo”. Ao ouvir isto, fiquei extremamente entusiasmado. Pensei logo, talvez ingenuamente, em Herbie Hancock, grande inspiração de Washington. Mas não. Afinal não. Era o pai do próprio Kamasi Washington. Também deve ser bom, pensei. Entrou com um clarinete, que a meio trocou por uma flauta transversal. Como associo este instrumento a um ambiente mais clássico, fiquei curioso. Era, de facto, interessante ouvir como a flauta se afundava harmoniosamente na música que vinha do palco, tal e qual todos os outros instrumentos.

A certa altura, Kamasi apresentou uma peça de cujo o nome já não me recordo. Após a introdução, o silêncio encheu a sala como nunca antes ainda nessa noite. Uma enorme expectativa foi precedida por um sereno início a solo do saxofonista. Olhando à volta, saltava aos olhos a acalmia, que parecia propagar-se na sala. Foram entrando outros instrumentos, mas quase sempre impercetivelmente. A dado momento, Rickey Washington decidiu também participar, já não com a flauta ou o clarinete. Eram só caretas, ao início. Mas logo desistiu de se conter e chorava abertamente sem tirar os olhos do filho. A partir daí, as lágrimas foram recorrentes nas restantes performances.

Kamasi Washinghton
GIG CLUB presents: Kamasi Washington @ LAV, Lisboa, Portugal 2019.05.11
© André Henriques
www.facebook.com/ahphoto.portugal/
insta @ahphoto_gigs

Quando o concerto se parecia estar a aproximar do fim, Washington deu espaço aos bateristas para se mostrarem, como fizera com (quase) todos os instrumentistas. Os restantes saíram do palco e estes ficaram por conta própria. Destaque mais do que apropriado, porque os dois músicos eram de facto extraordinários e, transcendendo a atonalidade do seu instrumento, quase lhe arrancaram uma linha melódica que se podia sentir e seguir. No entanto, à medida que o merecido show-off foi avançando, a linha foi-se esboroando, tornando-se difícil, pelo menos para mim, seguir os músicos e a música. Nessa altura, olhei para trás e era evidente que uma parte das pessoas tinha abandonado a sala. Não sei se por calor, dores de ouvidos causadas por colunas gritantes, ou talvez demasiado entusiasmo com o dueto de percussão. Enfim, tudo boas razões.

Minutos adiante, Kamasi e o resto da banda voltava ao palco e o concerto prosseguia, prestes a terminar. Uma das últimas peças a ser tocada era da autoria de Ryan Porter, o trombonista em palco. Washington elogiou a canção e lançou um desafio. Até agora, ainda ninguém tinha conseguido decifrar o compasso da composição. Os músicos na sala foram todos convidados a participar.

Kamasi Washinghton
GIG CLUB presents: Kamasi Washington @ LAV, Lisboa, Portugal 2019.05.11
© André Henriques
www.facebook.com/ahphoto.portugal/
insta @ahphoto_gigs

Com enormes aplausos, o concerto chegou ao fim. Os artistas foram agradecendo, havendo uma clara diferença nos aplausos que Washington recebia relativamente aos restantes. No entanto, houve um quase empate com a vocalista da banda. Apesar de ter sido a única a não lhe ver dedicado um momento específico no concerto. Também porque não fora necessário. Desde a entrada em palco, com movimentos semelhantes a posições de yoga e rituais tribais, assegurara-se de que todos os momentos lhe pertenciam. Na peça onde tivera um lugar mais proeminente, não ficara sozinha debaixo do holofote, como acontecera com os restantes. A sua energia era contagiosa e espalhava-se por toda a sala. No final, essa mesma energia foi-lhe retribuída nos agradecimentos e quando saiu de cena. Olhei para o lado e vi outro rosto visivelmente pasmado e agradecido. Olhei para o outro lado, para a frente e para trás e vi uma sala inteira a aplaudir com as mãos no ar e um sorriso de genuína retribuição.

Antes de abandonar o palco, Kamasi Washington mostrou-se disponível para autógrafos e fotografias nos bastidores (e possíveis respostas ao desafio). No entanto, naquele momento, a nossa única preocupação era sair bem depressa daquela sala, já sem razão para fingirmos estar a suportar o calor e os nossos ouvidos entupidos.

Agradecemos ao André Henriques e à Gig Club a reportagem fotográfica do evento, da qual incluímos aqui uma pequena amostra.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *