Kamasi Washington: um saxofone no céu, na terra e no LAV
Kamasi Washington trouxe uma noite inesquecível ao Lisboa ao Vivo, com o potente sopro das suas composições a vibrar no sentimento e experiência dos músicos.
Depois de uma semana chuvosa, Kamasi Washington veio a Portugal e com ele chegaram o sol e o calor. O artista norte-americano já tinha estado no Porto na sexta-feira, no Hard Club. No sábado, chegou a vez da capital. O músico e a sua banda atuaram num Lisboa ao Vivo, num concerto promovido pelo Gig Club, cheio de movimento por parte do público.
Pouco antes das 21h30, hora de início do concerto, quando já se tinha formado uma fila à porta da sala, um homem alto, forte, imponente, passava à frente de todos. A estrela entrava no LAV minutos antes da sua atuação, pela porta do público. Enganados por um tempo, descobrimos que a fila era para comprar bilhete, pelo que passámos nós também, deixando para trás os mortais. À Kamasi Washington.
Já lá dentro, a sala de simpático tamanho do LAV estava relativamente povoada. Junto ao palco, acumulara-se já logicamente uma boa quantidade de gente, bem como no primeiro andar. Ainda assim, não foram necessárias cotoveladas, acompanhadas de dissimulados, batoteiros ‘com licenças’, para conseguir um bom lugar. A sala foi enchendo e aquecendo. Ainda não estávamos no concerto propriamente dito e a plateia já se agitava com a música que ia passando enquanto esperávamos pelo início do espetáculo, que, escusado será dizer, não foi a horas.
Mais de um quarto de hora depois da hora marcada, o mesmo homem alto, forte e imponente entrava em palco com o seu saxofone e as típicas túnicas e vestes largas. Entrou também a banda: a vocalista, o teclista, o trombonista e os dois bateristas. Kamasi Washington começou por os apresentar a todos, apresentando-se a si próprio depois, dando início ao concerto. Assim que começaram a tocar, sentiu-se a força das composições de Kamasi. “Força” em todos os sentidos, a julgar pelo ligeiro entupimento dos ouvidos que veio com os altos níveis do som. Certamente alguém se esqueceu da sonoridade big band que caracteriza Washington e do que isso significa em termos de volume.
O último álbum de Kamasi Washington, Heaven and Earth, saiu no verão passado. Uma semana depois, veio o EP The Choice. Logicamente, o repertório do concerto ter-se-á maioritariamente debruçado sobre estes registos. E, de facto, a performance propriamente dita começou com o que me pareceu ser uma das faixas do LP, que depois terá seguido para uma improvisação. Neste género de composições é sempre muito difícil indicar com certeza de que canção se trata, se é que canção é o termo correto.
Durante o concerto, Kamasi Washington voltava a apresentar a banda à vez, dando-lhes espaço para brilhar com as suas improvisações. Os primeiros na lista foram o trombonista e o teclista. No entanto, o terceiro teve um lugar de destaque. O contrabaixista da banda fez a sala parar. Nos minutos que teve só para si, deu tudo em palco e convenceu-nos fortemente da sua proficiência com o instrumento. Não me é raro cruzar com contrabaixos e confesso que nunca vira nada assim. A rapidez dos pizzicatos e as rápidas mudanças de posição. Já no final do seu momento, pegou no arco e perdeu ligeiramente o encanto. Continuava petrificado, não obstante.
A meio do concerto, Kamasi anunciou que tinha uma surpresa muito especial para nós. O artista traria a palco “o homem que lhe ensinou tudo”. Ao ouvir isto, fiquei extremamente entusiasmado. Pensei logo, talvez ingenuamente, em Herbie Hancock, grande inspiração de Washington. Mas não. Afinal não. Era o pai do próprio Kamasi Washington. Também deve ser bom, pensei. Entrou com um clarinete, que a meio trocou por uma flauta transversal. Como associo este instrumento a um ambiente mais clássico, fiquei curioso. Era, de facto, interessante ouvir como a flauta se afundava harmoniosamente na música que vinha do palco, tal e qual todos os outros instrumentos.
A certa altura, Kamasi apresentou uma peça de cujo o nome já não me recordo. Após a introdução, o silêncio encheu a sala como nunca antes ainda nessa noite. Uma enorme expectativa foi precedida por um sereno início a solo do saxofonista. Olhando à volta, saltava aos olhos a acalmia, que parecia propagar-se na sala. Foram entrando outros instrumentos, mas quase sempre impercetivelmente. A dado momento, Rickey Washington decidiu também participar, já não com a flauta ou o clarinete. Eram só caretas, ao início. Mas logo desistiu de se conter e chorava abertamente sem tirar os olhos do filho. A partir daí, as lágrimas foram recorrentes nas restantes performances.
Quando o concerto se parecia estar a aproximar do fim, Washington deu espaço aos bateristas para se mostrarem, como fizera com (quase) todos os instrumentistas. Os restantes saíram do palco e estes ficaram por conta própria. Destaque mais do que apropriado, porque os dois músicos eram de facto extraordinários e, transcendendo a atonalidade do seu instrumento, quase lhe arrancaram uma linha melódica que se podia sentir e seguir. No entanto, à medida que o merecido show-off foi avançando, a linha foi-se esboroando, tornando-se difícil, pelo menos para mim, seguir os músicos e a música. Nessa altura, olhei para trás e era evidente que uma parte das pessoas tinha abandonado a sala. Não sei se por calor, dores de ouvidos causadas por colunas gritantes, ou talvez demasiado entusiasmo com o dueto de percussão. Enfim, tudo boas razões.
Minutos adiante, Kamasi e o resto da banda voltava ao palco e o concerto prosseguia, prestes a terminar. Uma das últimas peças a ser tocada era da autoria de Ryan Porter, o trombonista em palco. Washington elogiou a canção e lançou um desafio. Até agora, ainda ninguém tinha conseguido decifrar o compasso da composição. Os músicos na sala foram todos convidados a participar.
Com enormes aplausos, o concerto chegou ao fim. Os artistas foram agradecendo, havendo uma clara diferença nos aplausos que Washington recebia relativamente aos restantes. No entanto, houve um quase empate com a vocalista da banda. Apesar de ter sido a única a não lhe ver dedicado um momento específico no concerto. Também porque não fora necessário. Desde a entrada em palco, com movimentos semelhantes a posições de yoga e rituais tribais, assegurara-se de que todos os momentos lhe pertenciam. Na peça onde tivera um lugar mais proeminente, não ficara sozinha debaixo do holofote, como acontecera com os restantes. A sua energia era contagiosa e espalhava-se por toda a sala. No final, essa mesma energia foi-lhe retribuída nos agradecimentos e quando saiu de cena. Olhei para o lado e vi outro rosto visivelmente pasmado e agradecido. Olhei para o outro lado, para a frente e para trás e vi uma sala inteira a aplaudir com as mãos no ar e um sorriso de genuína retribuição.
Antes de abandonar o palco, Kamasi Washington mostrou-se disponível para autógrafos e fotografias nos bastidores (e possíveis respostas ao desafio). No entanto, naquele momento, a nossa única preocupação era sair bem depressa daquela sala, já sem razão para fingirmos estar a suportar o calor e os nossos ouvidos entupidos.
Agradecemos ao André Henriques e à Gig Club a reportagem fotográfica do evento, da qual incluímos aqui uma pequena amostra.