"Knives Out: Todos São Suspeitos" | © Pris Audiovisuais

Knives Out: Todos São Suspeitos, em análise

Depois das controvérsias de “Os Últimos Jedi”, Rian Johnson regressa em grande com “Knives Out”, um mistério tão retorcido quanto hilariante.

2019 tem sido um ano marcado pela luta de classes no grande ecrã. A Palme d’Or foi para “Parasitas” e sua sátira corrosiva, “Martin Eden” mostrou o monstro do antissocialismo enquanto Ken Loach e os Dardenne continuaram a bombar com o realismo social europeu. Apesar de Hollywood ser o píncaro doirado do capitalismo americano, até os seus estúdios têm vindo a explorar o tema, desdobrando-se em narrativas que vilificam a acumulação de riqueza e fazem o elogio daqueles que desafiam as hierarquias sociais. Há a revolução anárquica do “Joker”, as strippers de “Ousadas e Golpistas” e o terror dos ricos cabalistas em “Ready or Not”.

“Knives Out: Todos São Suspeitos” junta-se a este clube restrito de cinema que entretém no mesmo gesto com que galvaniza. Trata-se de uma subversão acídica de um dos géneros mais intrinsecamente ligados a uma glorificação de gente endinheirada. Referimo-nos, pois claro, ao mistério, nomeadamente aquele mistério que se passa no seio de uma família abastada, centrado numa casa ancestral e com uma intriga retorcida pronta a ser desemaranhada pela mão de um charmoso detetive cavalheiro. Tais são as fórmulas que se exibem desde o cinema mudo e do apogeu literário de Agatha Christie, códigos narrativos que raramente evoluíram ou passaram por transfigurações autocríticas. Pelo menos assim costume acontecer.

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O filme de Rian Johnson é a exceção que prova a regra, virando o classismo que corre pelas veias do género contra si mesmo. “Knives Out” tanto funciona como uma homenagem ao mistério clássico, como uma desconstrução do mesmo. É uma carta de amor e é uma paródia, um ataque jocoso às crispações da política atual e uma piada às custas de uma América apodrecida. Este é um mistério feito à medida do annus horribilis de 2019, trocando a intemporalidade dos clássicos pelo poder galvanizante que tem marcado tanto do melhor cinema destes últimos 12 meses. O melhor de tudo é que faz tudo isso e entretém como só os blockbusters costumam fazer. É uma sobremesa cremosa com uma pitada de picante na forma de comentário social.

Tudo começa, como não podia deixar de ser, com a descoberta de um cadáver ensanguentado numa mansão isolada. O morto é Harlam Thrombey, um milionário que fez a fortuna graças a uma série de sucessos literários. Num dos muitos piscares de olho temáticos que o filme passa toda a sua duração a fazer, Thrombey é um autor de mistérios elaborados, uma Agatha Christie barbuda do século XXI. Na noite anterior à descoberta do seu corpo degolado, o afortunado ancião tinha celebrado o aniversário na companhia da família, pelo que um manto de suspeita se dispõe sobre os potenciais herdeiros. O problema deste mistério é que tudo aponta para a sua resolução imediata. Afinal, Harlam parece ter rasgado a própria garganta.

Apesar do aparento suicídio, a polícia não larga o caso e nós, enquanto audiência, somos apresentados aos suspeitos durante mais uma ronda de interrogatórios. Uns dias antes da leitura do testamento, o famoso detetive Benoit Blanc apareceu para investigar, pondo as suspeitas em alta e os ânimos também. Lentamente se desvenda a podridão moral de uma família de sanguessugas sociais que, não obstante as suas proclamações de valor próprio, sempre dependeram da fortuna de Harlam. Há uma filha que construiu um negócio próspero depois de ter pedido um empréstimo milionário ao pai, um filho que deve a subsistência à publicação dos livros de Harlam e uma nora que se aproveita do dinheiro fácil para se tornar uma influencer das redes sociais. Nem os netos se safam desta doença da monstruosidade parasítica, sendo que temos até um neonazi adolescente à mistura.

De facto, a única pessoa que parece realmente abalada pela perda é Marta, a enfermeira e companheira chegada de Harlam. Ela terá sido uma das últimas pessoas a ver o idoso e as suas idiossincrasias psicológicas tornam-na na perfeita testemunha para uma investigação criminal. Acontece que Marta não consegue mentir. Ou melhor, ela mentir consegue, só não consegue é evitar o vómito no seguimento da falsidade. Esse é o perfeito toque de absurdo que vem complicar o enredo e sublinhar a comédia da intriga. Como uma imigrante financeiramente dependente do seu falecido paciente, Marta é a única pessoa sem qualquer razão para ter morto Harlam, e a precariedade da sua situação torna-a num peão para os jogos pérfidos de uma família de liberais hipócritas e agentes policiais meio incompetentes.

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© Pris Audiovisuais

Revelar mais do enredo seria uma traição ao filme. “Knives Out” é aquele tipo de experiência que funciona melhor quanto menos se souber sobre a história. Fica só o apontamento que Marta e Benoit se tornam nos centros gravitacionais do argumento e que é a viagem emocional da enfermeira que dá forma a todo o drama. É a sua memória e a sua angústia que estilhaçam a estrutura regular do mistério. Aparentemente, Johnson mostra-nos a solução para o mistério no fim do primeiro ato e assim transfigura o filme num thriller Hitchockiano. Só que nada é o que parece e, quando tudo se parece resolver e finalizar, “Knives Out” dá uma cambalhota invertida e regressa ao modelo de Agatha Christie. Daniel Craig, com um sotaque sulista maravilhosamente excessivo, até tem direito a um monólogo final à la Poirot.

Apesar da maravilha que é o argumento, a estrutura bizantina do enredo e a montagem afiada, o ingrediente secreto no meio de tudo isto é a sinceridade emocional que Johnson e companhia trazem aos seus afazeres paródicos. É isso que faz com que “Knives Out” se eleve acima dos impulsos mais didáticos e vistosos que maculam o engenho. Assim se revela a chave do sucesso. Trata-se disso e da prestação sem igual de Ana de Armas como Marta. Todos os atores estão perfeitos, mas é ela que tem de sustentar as reviravoltas mais explosivas do filme e balançar os desvios tonais. Rimo-nos muito graças à performance deliberadamente apatetada de Toni Collette, adoramos os sotaques de Daniel Craig e queremos aplaudir a malícia arrogante de Chris Evans, mas Ana de Armas é a verdadeira estrela de “Knives Out” e esta, no fim, é a sua história. É um conto de ódio e privilégio venenoso, um retrato da toxicidade do dinheiro herdado e um hino contra uma classe desproporcionalmente poderosa. Em suma, não percam este que é um dos filmes mais divertidos do ano!

Knives Out: Todos São Suspeitos, em análise
KNIVES OUT

Movie title: Knives Out

Date published: 4 de December de 2019

Director(s): Rian Johnson

Actor(s): Ana de Armas, Daniel Craig, Christopher Plummer, Chris Evans, Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Michael Shannon, Toni Collette, LaKeith Stanfield, Katherine Langford, Jaeden Martell, Riki Lindhome, Edi Patterson, K Callan, Frank Oz

Genre: Comédia, Crime, Drama, 2019, 130 min

  • Cláudio Alves - 80
  • Daniel Rodrigues - 75
  • Maggie Silva - 80
  • Marta Kong Nunes - 85
  • José Vieira Mendes - 60
76

CONCLUSÃO:

“Knives Out” é uma requintada paródia e carta de amor ao género dos mistérios de mansão. O filme deita a língua de fora à América de Trump e faz tudo em seu poder para entreter o espetador com uma história absurda e personagens coloridas. O elenco é estupendo, de forma geral, mas Ana de Armas é um estrondo particularmente merecedor de aplausos.

O MELHOR: O argumento retorcido, a performance emocionalmente transparente de Ana de Armas e os ritmos precisos da montagem e da música.

O PIOR: É notório que algumas personagens e seus subenredos foram podados na pós-produção. A iluminação, especialmente em cenas noturnas, é chocantemente feia.

CA

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  1. Frederico Daniel 9 de Janeiro de 2020

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