Lady Macbeth, em análise

Lady Macbeth é um filme de época severo, cáustico e muito pouco ortodoxo que contém na sua narrativa sórdida uma das melhores prestações do cinema de 2017.

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Lady Macbeth é um filme cuja principal característica é o modo como se opõe a qualquer tipo de expetativas ou ideias pré-concebidas do espetador. Esta é uma adaptação literária de uma obra do século XIX já por muitas vezes trazida ao cinema, algo bastante comum no panorama do cinema britânico, especialmente se nos restringirmos a cinema de época, o célebre costume drama. Na boa tradição de tais filmes, Lady Macbeth exibe primorosas recriações de ambientes de época assim como os esforços de um realizador cuja carreira foi até agora feita nos grandes palcos nacionais de Londres. Na mente do cinéfilo familiar com tal tipo de cinema, já se pode ter começado a formar um modelo mental de um respeitoso costume drama feito com toda a convencionalidade perfuntória de um telefilme da BBC. A verdade está bem distante de tal conjetura.

Para começar, é verdade que William Oldroyd nunca tinha realizado nenhuma longa-metragem antes de Lady Macbeth e que o seu nome é maioritariamente associado a trabalho nos palcos. Tal herança teatral, especialmente em Inglaterra, costuma resultar em filmes onde o trabalho de ator é tido como elemento singular da edificação fílmica, muitas vezes em detrimento da própria apresentação formal desse trabalho. No caso de Oldroyd, no entanto, a experiência teatral parece manifestar-se num extraordinário uso de ritmos mecânicos associados a situações naturalistas e à expressividade intrínseca na relação do ser humano com o espaço envolvente. Veja-se, por exemplo, a repetição de composições rígidas, a gestualidade codificada das figuras humanas e o modo como, a certa altura, a câmara parece posicionar a sua protagonista como mais um objeto decorativo do décor oitocentista.

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É claro, no entanto, que essa abordagem só funciona porque o texto em questão se predispõe a tal formalismo. A autora do argumento foi Alice Birch, uma dramaturga teatral, que moldou um conto oitocentista russo não só a um novo contexto britânico como também a uma sensibilidade crítica contemporânea. Assim, Birch tornou uma história sobre corrosiva amoralidade feminina num estudo cáustico de loucura numa hierarquia social baseada em volta de dinâmicas de poder tóxicas e naturalmente férteis para o florescimento de opressão.

A protagonista de Lady Macbeth é Katherine, uma jovem inglesa que foi vendida pelo seu pai juntamente com terras da família e forçada a casar com o filho de meia-idade de um proprietário rico. A audiência conhece-la no dia em que o matrimónio é oficializado e acompanha-a ao longo da sua humilhante noite de núpcias, onde se estabelece a relação sexual da jovem com o marido. Ele usa-a como um objeto erótico que, no entanto, não merece sentir o privilégio do toque. Tal dinâmica repete-se dia após dia, com o tirano cônjuge de Katherine e seu amargo pai a constantemente lembrarem a mulher do seu papel na casa, o de um objeto. Ela não pode sair do edifício nem que seja para um passeio, não pode contactar com ninguém a não ser com os servos seus inferiores sociais, não pode falar ao jantar quando há convidados, não pode adormecer antes de o seu marido ir para a cama, não pode desobedecer, não pode pensar, não pode falar, não pode ser mais que uma boneca de porcelana envolta em sedas que repousa muda num sofá vitoriano.

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Aos poucos, as ausências do marido vão dando mais liberdade a Katherine, que passeia nos campos à volta e impõe o seu domínio sobre os empregados do marido, entrando assim em contacto com Sebastian, um jovem homem dos estábulos que lhe captura o interesse e acaba por se tornar num companheiro sexual. Até aqui, a loucura anteriormente referida não estará muito evidente, mas isso muda quando Katherine envenena o sogro depois deste descobrir o seu adultério, um ato levado a cabo com tal calma monstruosa que Anna, a criada da senhora da casa, perde a capacidade de falar devido ao choque.

Depois disso, segue-se uma série de outras mortes, umas mais expectáveis que outras, sendo que o que verdadeiramente surpreenderá o espetador é o modo como a nossa Lady Macbeth em crinolinas e espartilhos consegue ir sair sempre impune. Isto relaciona-se diretamente com uma série de detalhes cruciais que Birch mudou da novela russa original como, por exemplo, o facto de Anna, o filho ilegítimo do marido de Katharine e a avó dessa criança serem pretos. Anna, em particular é alguém cuja humanidade é sempre negada, sendo ela uma arma para o abuso doméstico do senhor da casa, antes de ser uma testemunha silenciosa da senhora ou mesmo um bode expiatório. Outro exemplo, é a forma pela qual a diferença de estatuto entre a protagonista e seu amante traça o destino dos dois e condena um deles. Katherine não é uma mera vítima oprimida e levada à loucura homicida por um sistema social injusto, ela é uma clara agente dessa mesma injustiça.

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Depois das presidenciais americanas de 2016, muitos foram aqueles que ficaram espantados com os dados demográficos referentes ao voto das mulheres americanas, nomeadamente das mulheres caucasianas. Houve quem se perguntasse como é que tantas mulheres poderiam ter votado num claro misógino, um inimigo das suas liberdades. Lady Macbeth propõe, indiretamente, uma resposta a essa questão: quando um sistema oprime, mas também dá poder sobre outros indivíduos, é por vezes mais fácil suportar e apoiar o sistema opressivo do que abdicar do sentido de superioridade sobre aqueles que são assim classificados como inferiores.

Tal crítica social sem pudor associada a toda a já mencionada austeridade formalista do filme (mais depressa se creria que as imagens pertencem a uma obra de Haneke do que a uma produção britânica) podem ser elementos da grandeza de Lady Macbeth, mas todo o edifício cinematográfico ruiria sem a sua fundação – o desempenho de Florence Pugh. Nas mãos desta jovem cuja atitude relembra os primeiros grandes esforços de Isabelle Huppert em cinema, a figura principal de Katherine é uma cifra inescrutável sobre a qual a audiência tanto projeta martirização feminina como a voracidade de um predador enlouquecido. O génio de Pugh está precisamente na sua resistência a telegrafar tais extremos.

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Ao longo da sua narrativa, Lady Macbeth oferece-nos um estudo de personagem sobre como uma jovem abusada pela patriarquia chauvinista é esculpida por esse mesmo abuso até se tornar ela mesma numa tirana. Pugh nunca cai na incoerência, mas, paradoxalmente, conta-nos essa mesma história através de uma série de escolhas e reações contraditórias e por isso fascinantes na sua imperfeita e perigosa humanidade. No final, a experiência total de Lady Macbeth é relativamente simples, tal como as suas composições minimalistas, mas o seu impacto é sufocante, sobretudo pelo modo como a personagem principal nos vai fascinando com as suas complexidades até nos cortar a respiração com o horror das suas ações.

 

Lady Macbeth, em análise
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Movie title: Lady Macbeth

Date published: 2 de August de 2017

Director(s): William Oldroyd

Actor(s): Florence Pugh, Cosmo Jarvis, Naomie Ackie, Christopher Fairbank, Paul Hilton, Golda Rosheuvel

Genre: Drama, 2016, 89 min

  • Claudio Alves - 85
  • Rui Ribeiro - 75
  • José Vieira Mendes - 70
77

CONCLUSÃO

Lady Macbeth é o tipo de primeira longa-metragem que dará inveja a qualquer realizador estreante. Para além disso,é um filme que exibe grande segurança formalista assim como uma eletrizante impetuosidade na quebra de fórmulas e clichés associados tanto ao seu género como ao panorama cinematográfico nacional de onde oriunda. A cereja no topo do bolo é como, no seu centro, a obra conta com uma das melhores prestações do ano.

O MELHOR: A assustadora criação que é Katherine interpretada por Florence Pugh. Na verdade, todo o elenco é excecional e Naomie Ackie como Anna é quase tão extraordinária como a protagonista.

O PIOR: A geral previsibilidade do enredo, não contando com as suas passagens finais que são radicalmente diferentes da conclusão presente na sua origem literária.

CA

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