10ª Festa do Cinema Italiano | Le confessioni, em análise

Le confessioni é um conto moral que tenta alertar as audiências da 10ª Festa do Cinema Italiano em relação às injustiças de poder na economia mundial.

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Le confessioni, o mais recente filme do cineasta italiano Roberto Andò, decorre numa daquelas perfeitas localizações narrativas que só podem mesmo existir na ficção. Mais especificamente, a narrativa do filme é hermeticamente inserida num luxuoso resort, algures na Europa, onde os membros do G8 e alguns convidados especiais estão reunidos. Isolado do mundo em termos geográficos, sociais, económicos e quase temporais, o resort começa a assemelhar-se a uma dimensão alternativa de impossível privilégio e poder, um microcosmos fechado sobre si mesmo onde as pessoas mais poderosas do mundo decidem o futuro de todos aqueles que existem fora do seu limbo, quais deuses no Olimpo distante.

Pela sua parte, a cenógrafa Giada Esposito e o diretor de fotografia Maurizio Calvesi fazem o que podem para elevar este local a um nível de perfeição faustosa tão rarefeita que parece irreal. Imaculados corredores estendem-se em infinitas tonalidades de branco, enquanto salas de reuniões parecem ter sido transplantadas de um filme de James Bond tal é a sua simples e muito artificial potência dramática. Uma conversa ominosa numa piscina é transformada, pela câmara de Calvesi, numa pintura de reflexos trémulos e sombras espessas que ameaçam consumir toda a luz que as define. Noutra ocasião, o acender de uma vela rasga com doirado a simplicidade azulada e profundamente elegante de um quarto mergulhado na penumbra da noite. Em suma, Le confessioni é um agradável bálsamo cinematográfico para os olhos que, apesar de não mostrar grandes riscos ou impressionantes feitos de criatividade estética, é polido e eficiente na sua construção formal.

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Tirando os elementos já mencionados, Le confessioni é um filme que transcende a mera e inofensiva mediocridade para cair nas profundezas da risível incompetência e abjeta estupidez. Poderíamos mesmo dizer que o texto escrito por Andò e Angelo Pasquini seria uma imperdoável ofensa contra a inteligência do público geral, não fosse a sua incompreensivelmente séria sinceridade uma marca clara de como os cineastas julgavam que estavam a fazer uma obra importante, urgente e até inspiradora. Na sua forma atual, o filme poderá apenas ser apreciado de um modo minimamente positivo se o espetador for alguém tão inocente que a noção que os governos das grandes potências mundiais podem sacrificar as economias mais pobres para potenciarem o seu próprio enriquecimento for uma novidade. Talvez uma criança que nunca tenha ouvido falar de Robin dos Bosques ou um dos seus muitos análogos poderá ver alguma relevância social nesta ideia tão estrambólica que os poderosos tendem a enriquecer à custa dos mais pobres. Para o público geral, a ingenuidade idiótica do argumento é imperdoável.

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Mas uma coisa é certa, o desenrolar do enredo do filme consegue ser ainda mais ignóbil que a sua premissa temática. Como já dissemos antes, Le confessioni desenrola-se durante uma reunião do G8 para a qual foram convidados três indivíduos especiais. Eles são um cantor, uma escritora de livros infantis e um monge capuchinho que também escreve livros, inclusive uma polémica obra em que defende a legitimidade espiritual do suicídio se este for feito em prol da honra ou com o benefício de outras pessoas em mente. O clérigo em questão chama-se Roberto Salus e, na primeira noite da sua estadia, ele é convidado ao quarto de Daniel Roché, o diretor do Fundo Monetário Internacional, que se quer confessar. Na manhã seguinte, Roché é encontrado morto por aparente suicídio e todos os olhos são postos no homem que ouviu e talvez tenha gravado a sua última confissão.

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Antes da sua morte, Roché tinha estado envolvido na edificação de um plano económico que, segundo as suas próprias palavras, seria apocalíptico, mas que resultará no enriquecimento das nações mais poderosas. Nunca ouvimos os detalhes deste plano que estava para ser posto em prática no seguimento da reunião, mas somos informados que a morte de Roché e a possível divulgação de detalhes secretos por parte de Salus poderão comprometer não só os esquemas do G8, como pôr em risco toda a economia mundial. Afogados no seu próprio medo e possuindo a malvadez de vampiros psicopatas, a maior parte dos membros do G8 concorda que o clérigo tem de ser silenciado após revelar todos os seus segredos, pondo mesmo em hipótese a prisão do homem ou mesmo o seu assassinato.

Descobrindo a malvadez latente a todos estes homens de poder, a escritora de livros infantis concorda em ajudar Salus a convencer os representantes de Itália e do Canadá a votarem contra o plano, sendo que ambos têm sérias dúvidas em relação aos seus catastróficos efeitos para nações como Grécia. Os alemães, ingleses e americanos são, por outro lado, autênticos demónios cuja podridão espiritual é tão intensa que até os animais se parecem revoltar contra eles. No final, o filme torna-se num thriller que vê Salus a lutar contra o relógio numa tentativa de salvar o mundo, ao mesmo tempo que tenta alertar as audiências para as graves injustiças que trespassam a estrutura económica do nosso mundo atual. Tudo isto é pontuado por um realismo mágico reminiscente de Bem-Vindo Mr. Chance, se Peter Sellers estivesse a interpretar um monge católico nesse filme.

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Apelando a outro exemplo cinematográfico, gostaríamos de lembrar o episódio das reuniões políticas mostradas no primeiro volume de As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes. Aí, a simplicidade caricaturada dos eventos é mostrada de modo paródico e torna-se assim numa acutilante sátira política com traços surrealistas. No caso de Le confessioni, não existe qualquer humor ou variação tonal que ofereça alguma alternativa á seriedade sepulcral com que Roberto Andò decidiu apresentar o seu conto moral. Pelo contrário, Andò realiza o filme como se tivesse em mãos o mais incendiário objeto de cinema político já visto. Sendo assim, os absurdos do enredo, o uso quase kitsch de simbolismo animal, a unidimensionalidade demónica dos vilões e as muitas outras facetas ridículas deste filme deixam de ser somente medíocres e tornam-se ativamente cómicas. De facto, a melhor maneira de apreciar, ou confrontar, este monumento à estupidez cinematográfica é com um bom sentido de humor capaz de espremer prazer dos maiores píncaros de incompetência imagináveis.

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É que nem mesmo Tony Servillo consegue salvar Le confessioni. O ator, usualmente maravilhoso, é aqui preso a um papel caracterizado por uma dignidade estoica que aniquila todo o carisma natural que Servillo possui. Pelo menos ele não está condenado a ter todo o seu diálogo dobrado como acontece a grande parte dos membros deste elenco internacional como Connie Nielsen e Daniel Auteuil. Para piorar a situação desses atores a sonoplastia do filme é tão atroz que, por momentos, um espetador muito generoso poderia supor que Roberto Andò estava a tentar referenciar os filmes italianos do passado e sua infame sonoridade. Mas não, tal como quase tudo neste filme, o som é simplesmente mau, sem nada que o redima ou torne em algo mais inofensivo que o estonteante ataque sensorial e intelectual que todo o malfadado projeto acaba por ser.

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O MELHOR: O início dos créditos que anuncia o final da tortura cinematográfica.

O PIOR: Tudo o que não é a fotografia ou os cenários.



Título Original:
Le confessioni
Realizador:
Roberto Andò
Elenco:
Toni Servillo, Daniel Auteuil, Pierfrancesco Favino, Connie Nielsen
Drama, Thriller | 2016 | 108 min

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