"EO" | © Nitrato Filmes

LEFFEST ’22 | EO, em análise

“EO” marca o regresso de Jerzy Skolimowski à realização. Desde 2015 que o autor polaco com 87 anos não assinava novo projeto – felizmente esta obra recente é maravilha das maravilhas, quiçá um dos seus melhores filmes. Estreado originalmente no Festival de Cannes onde conquistou prémio do Júri, “EO” centra-se na vida sofrida de um burro, fazendo lembrar a “Peregrinação Exemplar” de Robert Bresson, trazida do século passado para uma modernidade vertiginosa. No Lisbon & Sintra Film Festival, a obra integra a secção Fora de Competição e, na corrida dos Óscares, o trabalho de Skolimowski representa a Polónia na senda do galardão para Melhor Filme Internacional.

Vermelho tudo consome, uma cor febril e violenta que também reconforta. É como um ventre profundo, aconchegando-nos a alma em abraço escarlate. Assim começa “EO,” com vermelho, num circo onde a cor pinta a arena, luzes brancas em strob constante dando alguma variação ao espetáculo. No meio do caos cromático, o burro titular é a estrela do show, dançando com a sua treinadora num ato que parece quase místico quando capturado pela câmara de Jerzy Skolimowski. Há visceralidade na imagem do animal, uma qualidade despersonalizada justaposta a algo mais estilizado, mais poético talvez. Estamos perante público, mas há intimidade na apresentação das figuras. Desde cedo, “EO” se afigura enquanto filme de experimentação e paradoxos.

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© Nitrato Filmes

A inspiração para a fita está em Bresson, na Paixão de Cristo e na imagem do Presépio. No entanto, a tradição ancestral é somente ponto de partida para um épico picaresco que, na sua desventura estética, nos aponta a evoluções vindouras da arte. Parte do engenho depende de uma estrutura onde enredo há pouco ou não existe de todo, episódios em paisagem Europeia que nos recontam os males da Humanidade através dos olhos animais. Acompanhamos o burrinho, desde o circo onde era feliz até ao matadouro em que encontra o seu fim, passando por uma panóplia de donos e más sortes, fortunas inusitadas, negócios mal feitos e muita crueldade.

Uma e outra vez, regressamos ao vermelho, essa tintura que torna o mundo filmado num feitiço sobrenatural. É como um leitmotiv cujos significados se alteram com cada repetição. Primeiro pode ser o conforto do familiar, depois a mágoa da memória projetada. É a beleza do cavalo branco mirado com inveja suspeitosa, ou a paranoia de uma floresta desconhecida tornada numa visão do além. Podem os burros sonhar com o céu? Será que pensam no inferno? Talvez isso seja fútil quando, no mundo dos Humanos, todo o espaço é inferno para quem se sujeita ao seu domínio. Até o cinema em si parece perder fôlego quando algemado à presença de pessoas e só na liberação encontra seu máximo potencial.

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Sempre que Eo cai na mão de outro dono, por muito temporário que seja, o sofrimento é garantido e também o é um congelar da criatividade atrás das câmaras. Por outras palavras, a presença de atores humanos é deliberadamente acompanhada pela intensificação de convenções, enquanto a sua ausência proporciona imaginações loucas, qual evocação de forças primordiais expressas pela forma de cinema. Veja-se a floresta vermelha, ou um riacho saído de conto-de-fadas ou porventura “A Sombra do Caçador.” Note-se como a sonoplastia encontra infinitas formas de experienciar um mundo de estímulos constantes, desde o gado em fúria ao jogo de futebol espiado por detrás do público.

Também a montagem de Agnieszka Glinska assim se afigura e a música de Pawel Mykietyn inquieta na assombração oscilante. O maior génio de todos, além de Skolimowski pois claro, é o diretor de fotografia Michal Dymek, cujos esforços são dignos de Óscar ou algo maior ainda. No advento de mortificação inimaginável, há um interlúdio de transtorno imenso quando, para evitar o abuso de animais, Skolimowski e Dymek representam o suplício de um corpo desfeito através da robótica. Com a câmara junto ao chão, seguindo um mecanismo despido, o filme corta-nos a respiração. Há aqui uma simplicidade quase rudimentar, elevada à plenitude do cinema mágico e ao questionamento dramático sobre o progresso enquanto maneira de simultaneamente causar e evitar a dor.

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Tudo na fita é um risco, uma ideia louca levada à concretização pelo artista consagrado sem nada a perder. Essa atitude enche-nos o peito de admiração, de amor e êxtase. Contudo, para o paraíso há o inferno, para o triunfo há o erro. Algumas passagens humanas pecam pela nebulosidade da sua perspetiva, intenções sociopolíticas perdidas entre o vago e o melodramático. A alegoria do burro é incerta da mesma forma, ora esbatendo sua realidade até que tudo é abstrato, ou perdendo o fio à meada no turbilhão de ideias aqui exploradas em 86 sublimes minutos. Realismo mistura-se com o sonho em copulação santa ou na prece do mal. Quem sabe – quiçá um trabalho mais constante e seguro fosse menos interessante. Afinal, a perfeição é inimiga de si mesma. Na peregrinação do burro, Skolimowski leva-nos também ela numa jornada por caminhos traiçoeiros. O seu destino é a glória do cinema em estado de graça e é a essa maravilha que ele nos conduz. “EO” é um milagre!

EO, em análise
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Movie title: EO

Date published: 18 de November de 2022

Director(s): Jerzy Skolimowski

Actor(s): Sandra Dryzmalska, Isabelle Huppert, Lorenzo Zurzolo, Mateusz Kosciukiewicz, Tomasz Organek, Lolita Chammah, Anna Rokita, Agata Sasinowska

Genre: Drama, 2022, 86 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

As estações da cruz precipitam-se fora de ordem, Cristo trocado pelo burro que sofre em nome de uma Humanidade cruel. Não é da “Peregrinação Exemplar” e seu Balthasar que falamos, mas sim de uma alternativa moderna e vanguardista, onde o minimalismo Bressoniano dá lugar à experimentação quase-caótica de Jerzy Skolimowski. Abençoado seja ele e seus burrinhos amados, um filme tão espiritual como pagão, uma prece e um circo, um sonho e um pesadelo. É tudo isso e muito mais – uma das obras mais marcantes do ano, disso não há dúvida.

O MELHOR: A fotografia, o som, a montagem, a imaginação de Sjolimowski levado ao rubro, ao máximo dos seus poderes enquanto mestre da sétima arte.

O PIOR: O episódio com Isabelle Huppert e seu afilhado padre era escusado. Além do mais, destoa a fita no precipício do seu final brutalíssimo. A estrutura episódica tanto traz benesses como estes pequenos defeitos, estas imperfeições que só servem para tornar os milagres de “EO” mais evidentes.

CA

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