"R.M.N." | © Wild Bunch International

LEFFEST ’22 | R.M.N., em análise

Afirmando-se enquanto tratado cinematográfico contra a xenofobia, “R.M.N.” de Cristian Mungiu é mais um exemplo excelente do Novo Cinema Romeno. A obra estreou na competição principal de Cannes, antes de fazer carreira numa série de outros festivais prestigiados. Agora, chega a território português em antestreia possibilitada pelo Lisbon & Sintra Film Festival, onde integra a seleção oficial Fora de Competição. Só pela temática e fúria implícita na abordagem, “R.M.N.” pode considerar-se como um dos filmes mais importantes do ano.

Algures na Roménia, junto a terras fronteiriças com a Hungria, existe uma pacata vila onde a população se divide por barreiras linguísticas e heranças culturais distintas. Lá se fala romeno, alemão e húngaro, havendo até missas separadas consoante a tradição ancestral de cada linha sanguínea. Apesar da aparente diversidade, há uma ideia de união prevalente à população, mesmo que incerta e sustentada pelo ódio a inimigos comuns. É neste complicado cenário social que a câmara do realizador Cristian Mungiu encontra um rapaz a fazer sua viagem matinal rumo à escola, através de um arvoredo gelado e cheio de segredos.

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O diretor de fotografia Tudor Vladimir Panduru pinta este prólogo em tons invernais, neve pincelando alva brancura por entre as sinuosas linhas arbóreas de madeira escura. Quase ficamos cegos com o clarão azulado da paisagem, mas há também uma qualidade pseudofolclórica nos visuais apresentados, como se de um conto-de-fadas se tratasse. Essa qualidade que posiciona esta história algures além do real mais se sublinha quando o menino vê algo que a câmara esconde. Terror esboçado na expressão, o trauma explode por detrás daqueles olhos inocentes e, daí em diante, nem um pio sairá da sua boca. O choque amaldiçoou-o com mudez.

Esse rapaz é filho de Matthias, um pai ausente que trabalha na Alemanha, mas depressa perde o emprego. A cena no bosque foi mera introdução ao universo de “R.M.N.,” cuja narrativa só verdadeiramente começa quando encontramos esse emigrante carrancudo, tão ofendido pela comparação com ciganos que agride um colega supervisor. Ao invés de ficar por lá para confrontar as consequências do crime, ele parte numa viagem repentina de regresso a casa. Na Roménia, contudo, espera-o uma esposa que há muito perdeu a paciência com a toxicidade de Matthias e o menino que não fala e que é, em tudo o resto, uma desilusão para um patriarca sedento por rapaz forte e insensível.

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Tanto o argumento de Cristi Mungiu se foca na perspetiva de Matthias como na de Csilla, antiga amante desse fulano violento. Ela também é quem gere a maior indústria da comunidade, uma fábrica de bens alimentares onde se fazem os pães e bolos tradicionais que todos comem. No momento presente, alguns dias antes do Natal, ela e sua patroa ponderam a necessidade de contratar mão-de-obra imigrante para corresponder às condições de um apoio financeiro da União Europeia. Localmente, ninguém quer trabalhar por tão pouco salário, mas também não há grande tolerância para quem é vista como forasteira.

A chegada combinada de Matthias e trabalhadores originados no Sri Lanka lança os dados para um jogo tenebroso, pelo qual tensões sociais se vão intensificando até explodirem em forma de calamidade. O retrato da comunidade abrange uma panóplia colossal de personagens, todas elas exploradas por um elenco soberbo e escritas com especial astúcia, atenção ao detalhe e arestas vivas. Também são agentes alquímicos que, quando combinados, depressa resultam na deflagração de chamas, labaredas de ódio e hipocrisias religiosas. Sem papas na língua ou falta de coragem, Mungiu faz o diagnóstico a uma Europa dividida e insular, a transbordar de racismo, xenofobia, e outros preconceitos que tais.

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De facto, o título da fita refere-se não só à identidade romena como à ressonância magnética que se usa para perscrutar o cérebro humano. Em certa medida, é isso que “R.M.N.” se propõe a fazer, culminando numa extraordinária encenação que deve ter demorado eternidades a aperfeiçoar. Na segunda metade do filme, depois da violência se abater sobre Csilla e seus novos trabalhadores, os líderes políticos e espirituais organizam uma reunião com toda a gente da vila. Discute-se o fado dos imigrantes e vota-se para a sua expulsão num longo plano contínuo que faz sequência estática. Poderia ser um mecanismo enfadonho, mas, nas mãos de um mestre realizador, isso torna-se empolgante de ver, arrebatador até.

Tão alta é a qualidade desse ato numa só cena que o resto da fita parece menorizado em comparação. Também se regista um problema de equilíbrios dramatúrgicos que privilegiam de tal modo Matthias e Csilla ao ponto de desumanizarem os imigrantes asiáticos em jeito passivo, qual reflexo da vila vil. São problemas menores, é certo, mas há também questões de tonalidades mutantes, desde a sugestão do elemento sobrenatural até um final ursino que choca, mas talvez vá longe demais no que se refere a justiças divinas e terror cinematográfico. Em todo o caso, “R.M.N.” é obra importante e executada com todo o brio e disciplina de um autor rigoroso, capaz de esmiuçar as especificidades do ódio tanto ao nível do indivíduo como do sistema, da cultura, da economia, talvez até de todo um continente bêbado com hipocrisia e negações vácuas.

R.M.N., em análise
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Movie title: R.M.N.

Date published: 19 de November de 2022

Director(s): Cristian Mungiu

Actor(s): Marin Grigore, Judith State, Macrina Barladeanu, Orsoloya Moldován, Rácz Endre, Andrei Finti, Ovidiu Crisan, Zoltán Deák, Victor Benderra, Alin Panc, Varga Csilla

Genre: Drama, 2022, 125 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Um robusto grito de raiva contra a xenofobia, “R.M.N.” é obra de cinema político executado com rigor e formalismos frios. Cristian Mungiu mais uma vez nos mostra ser um dos grandes realizadores do século XXI, sua mestria da mise-en-scène um exemplo do melhor que se faz na onda do Novo Cinema Romeno.

O MELHOR: Em termos gerais, há que louvar a fotografia de Tudor Vladimir Panduru que, sem descurar os registos realistas que Mungiu tanto ama, encontra qualidades reminiscentes da pintura viva. Através da sua câmara, a paisagem rural torna-se num mural de Bruegel. Em termos mais específicos, fica o aplauso para toda a sequência da reunião comunitária.

O PIOR: Matthias é uma personagem muito limitada, apesar de personificar um tipo de masculinidade bem desmantelada pelo texto crítico. Quiçá “R.M.N.” beneficiasse de um guião que lhe prestasse menos atenção e investisse mais tempo nas figuras sistematicamente marginalizadas pelas estruturas sociais e narrativas.

CA

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