LEFFEST ’17 | Corpo e Alma, em análise

“Corpo e Alma” é o mais recente triunfo da cineasta húngara Ildikó Enyedi, que aqui criou uma das mais estranhas e comoventes histórias de amor do cinema atual. O filme estreou originalmente na Berlinale e agora teve a sua antestreia portuguesa no Lisbon & Sintra Film Festival.

corpo e alma on body and soul critica leffest

Há 28 anos, Ildikó Enyedi venceu o prémio para melhor primeira longa-metragem no festival de Cannes por “O Meu Século XX”. Esse belíssimo filme conta a história de duas irmãs gémeas, separadas à nascença e que, por mero acaso, se encontram a viajar ao mesmo tempo no Expresso do Oriente. Este ano, Enyedi conquistou o Urso de Berlim com outra história de vidas paralelas. No entanto, longe de estar interessada em explorar novamente o movimento humano na direção da modernidade, a cineasta húngara concebeu, em “Corpo e Alma”, uma comovente ponderação sobre o mistério do amor. Amor este que nasce nos mais estranhos lugares e cuja chama é acesa e alimentada pelas mais bizarras condições imagináveis.

Para se perceber quão bizarro “Corpo e Alma” é, talvez seja apropriado refletir sobre os seus primeiros momentos. Aí, a imaginação de Enyedi leva as suas audiências até um bosque coberto por um gélido manto de neve. Por entre essa paisagem de brancura fria entrecortada pelo esqueleto de árvores despidas, dois veados deambulam em busca de alimento. O macho e a fêmea escavam a neve, comem algumas folhas verdes desenterradas da carpete branca, bebem a água de uma ribeira cujas correntes resistem ao congelamento e interagem um com o outro, tocando-se com algo que, num contexto humano, poderia ser facilmente classificado como ternura.

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Tal bucólica invernal depressa dá lugar a imagens animalescas de um teor bem diferente, quando nos é revelado o local onde a maior parte da ação de “Corpo e Alma” decorre – um matadouro em Bucareste. Nesse ambiente, a câmara de Enyedi desliza pelos corpos de vacas, olhando as texturas dos animais, perscrutando a vitalidade amedrontada do seu olhar e testemunhando a sua sistemática matança, o desmembramento de seus corpos e a preparação da sua carne para consumo. Delicadeza e brutalidade andam de mãos dadas nas imagens desta fábrica de morte e alimento, sendo que, por muito horrenda ou bizarra que seja a realidade documentada, Enyedi parece sempre capaz de nela encontrar algo belo e que merece ser valorizado, ou mesmo amado.

Essa generosidade representativa não se estende somente aos animais e à instituição que os processa. Também abrange os humanos, como Endre e Mária, os improváveis protagonistas desta improvável história de amor. Ele é o diretor financeiro do matadouro, está na meia-idade, sozinho e o seu braço esquerdo há muito que se encontra paralisado. Ela é a nova controladora de qualidade do matadouro, uma jovem figura ostracizada pelos seus colegas devido aos seus problemas no que diz respeito a interações sociais. Visitas a um médico que a trata desde criança parecem sugerir que Mária poderá ter algum tipo de autismo, mas Enyedi nunca a filma do modo sensacionalista ou melodramático que muitos outros cineastas utilizariam.

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Pelo contrário, a realizadora imerge o espetador no mundo solitário dos seus dois protagonistas, fazendo da construção formal da sua obra um exercício de empatia. O toque de um estranho na estação de comboio, por exemplo, choca Mária, fazendo-a parar e as composições do filme parecem perder a sua harmonia, cortando o corpo dela com peculiares sobreposições de objetos desfocados. Noutras ocasiões, as tentativas de Mária entender o mundo e saborear as sensações tão facilmente experienciadas pelas pessoas “normais” proporcionam algumas das mais belas cenas na filmografia desta realizadora, autênticos hinos sensualistas ao heroísmo de alguém tentar ultrapassar as suas próprias barreiras pessoais.

No entanto, não nos querendo antecipar em demasia, talvez fosse melhor esclarecer a ligação entre os veados e os dois trabalhadores do matadouro antes de falarmos dos esforços de Mária. Os veados e sua floresta perpetuamente gelada constituem a matéria dos sonhos de Endre e Mária. Eles apenas descobrem esta ligação meio psíquica, espiritual e com o seu quê de magia, quando químicos para o acasalamento de vacas são roubados e uma investigadora vem entrevistar os trabalhadores em busca do culpado (isso envolve uma série de perguntas invasivas sobre sonhos, práticas e história sexual). Inicialmente, ela pensa que o par está a pregar-lhe uma partida ao descrever o mesmo sonho, pelo que os confronta, fazendo com que ambos se apercebam da sua ligação sobrenatural.

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Essa ligação leva os dois estranhos a começarem a interagir dentro e fora do mundo onírico e, pouco a pouco, a sua necessidade de se sentirem próximos um do outro vai aumentando e, tão gradualmente como o amor desabrocha entre os dois, o espetador vai ficando cada vez mais investido na felicidade dessas duas almas solitárias. O caminho para um final feliz, como é apropriado para um conto-de-fadas adulto como este, não é fácil, contudo. Se, para Endre, a maior adversidade é uma baixa opinião de si mesmo, assim como medo de se magoar a si e à amada, para Mária, os obstáculos são muito mais desafiadores. Ela tem que aprender, não só, a contactar intimamente com outro ser humano, tanto a nível social, emocional e sexual, como também tenta entender o prazer de sensações outrora para além da sua compreensão.

Atenção que a narrativa de “Corpo e Alma” não é nenhum tipo de história de como uma mulher autista é curada pelo amor de um homem mais velho, mas sim uma celebração do poder do contacto humano, cujos paralelos às ações instintivas de animais são ocasionalmente surpreendentes. Parte desse precário equilíbrio tonal e concetual é fruto da já mencionada abordagem estilística que Enyedi usa para telegrafar o mundo de Mária. A prestação de   Alexandra Borbély também é estupenda, tornando palpável o crescimento e angústias desta mulher apaixonada sem alguma vez sentimentalizar as mágoas da sua personagem ou trair o seu rígido repertório de reações expressivas.

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Peculiares cenas e imagens como a encenação a priori de interações sociais com bonecos Playmobil ou a tentativa de sentir o calor e suavidade sedosa de uma porção de puré de batata tornam-se em eletrizantes momentos, onde Enyedi parece testar os limites sensoriais do cinema. Uma noite passada em conjunto é mostrada com a genuína reticência e insegurança, ao mesmo tempo que os ruídos da cidade sussurram uma sinfonia murmurada e as sombras de cortinados esvoaçantes pintam corpos pálidos em matizações de oiro e bronze. Um passeio pelo parque é uma luxuriante festa de sensações, uma orgia de imagens, de ruídos, de toques. Na simplicidade do mais pequeno gesto, “Corpo e Alma” encontra um poço de beleza inimaginável, como que filtrando as suas imagens pela inefável maravilha de um coração insuflado de amor, pelo outro ser humano, pelo mundo, pela vida.

 

Corpo e Alma, em análise
Corpo e Alma

Movie title: Teströl és lélekröl

Date published: 23 de November de 2017

Director(s): Ildikó Enyedi

Actor(s): Alexandra Borbély, Géza Morcsányi, Zoltán Schneider, Ervin Nagy, Tamás Jordán, Zsuzsa Járó, Réka Tenki, Júlia Nyakó, Itala Békés

Genre: Drama, Romance, 2017, 116 min

  • Claudio Alves - 90
  • José Vieira Mendes - 90
90

CONCLUSÃO

Sonhos transmutam-se em genuína ligação humana, reverias oníricas de duas almas misteriosamente entrelaçadas dão lugar à intimidade física e emocional, uma bizarra história de amor torna-se num dos mais belos e comoventes filmes do ano. Tais são os efeitos dos poderes transfiguradores de Ildikó Enyedi que, com “Corpo e Alma”, primeiro conquistou o júri da Berlinale e agora se propõe a conquistar os corações de cinéfilos por todo o mundo.

O MELHOR: A magistral fotografia de Máté Herbai que, para além de filmar belíssimos tableaux de dualidade espiritual visualizada, consegue construir um esquema visual a partir de imagens incongruentes que, no entanto, transmitem uma sedutora harmonia. Frias florestas de sonho e minimalismo urbano pintam, em conjunto, um poema visual de calidez humanista, mesmo nos mais grotescos cenários.

O PIOR: Apesar de a personagem de Mária e sua maravilhosa concretização às mãos de Alexandra Borbély serem, de facto, magnéticas, é difícil não denotar um certo desequilíbrio entre a atenção que “Corpo e Alma” presta à sua protagonista feminina em detrimento de maior desenvolvimento do seu protagonista masculino.

CA

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