LEFFEST ’17 | Frost, em análise

Em “Frost”, o cineasta lituano Sharunas Bartas tenta explorar as complexidades do conflito armado que afeta a Ucrânia desde a anexação da Crimeia. Esta é uma das obras em competição na mais recente edição do Lisbon & Sintra Film Festival.

leffest frost critica

Infelizmente, é muito fácil deixar que ideias como guerra se tornem em algo abstrato, distante da nossa realidade imediata e fácil de ignorar, desde que os seus efeitos não sejam sentidos na pele. Afinal, com constantes notícias de conflitos armados à volta do mundo, tais ocorrências correm o perigo de se transmutarem num ruído indefinido e ininteligível, sempre posto de parte ou encarado como uma constante sem significado nas nossas vidas. Vidas perdidas tornam-se em dados numéricos, cidades destruídas tornam-se em imagens banais e o sofrimento humano torna-se invisível. Sharunas Bartas parece estar ciente desse mesmo fenómeno, pois o seu mais recente filme “Frost”, pelo menos a nível textual, manifesta-se contra tal abstração.

Mais especificamente, “Frost” é um filme sobre o conflito armado que assola a Ucrânia desde a anexação da Crimeia pela Rússia e sobre o modo como o mundo exterior a essas fações em conflito direto ora ignora, esquece ou é incapaz de compreender a realidade visceral do que se está a passar. Para isso explorar, Bartas concebeu uma narrativa que incide na viagem de dois jovens lituanos até à frente de batalha na Ucrânia. Eles são Rokas e sua namorada, Inga, e estão encarregues de transportar mantimentos até às tropas ucranianas em nome do apoio humanitário internacional. O par não parece particularmente investido na sua missão, sendo a primeira cena do filme uma discussão em que um amigo de Rokas o persuade a ir até à Ucrânia, e, durante a viagem, a sua apatia é constantemente posta à prova pela crescente desolação da paisagem envolvente e pela violência explosiva que começa a rasgar a quietude sepulcral do filme na sua última meia hora.

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É claro que, sendo este um filme de Sharunas Bartas, é difícil entender se a apatia dos jovens é um comentário crítico e intencional da parte do texto ou se é somente a consequência da adoção do usual registo interpretativo que Bartas promove nos seus filmes. A construção formal do filme bem parece estar mais presa a uma execução perfuntória de fórmulas já cansadas do que qualquer tipo de reflexão sobre as exigências específicas de tal projeto. Veja-se, por exemplo, o modo como Bartas filma quase sempre os seus atores em grande plano, isolando-os do mundo em redor de forma tão pervasiva que se torna praticamente impossível entender a sua relação com o espaço em que habitam. Em cenas de diálogo, isso é particularmente aflitivo, despoletando uma atmosfera quase claustrofóbica, mas também incrivelmente entediante.

Tédio é talvez a palavra de ordem para a maior parte das audiências que se sujeitem ao novo projeto de Bartas. Desde as enormes sequências em que nada parece acontecer ao foco míope que o cineasta lituano dá à observação de duas personagens cataclismicamente indefinidas, “Frost” é um filme capaz de testar a paciência dos cinéfilos mais devotos. A monotonia dissipa-se um pouco, quando os dois jovens chegam a Kiev e se encontram com Andrei, o seu contacto ucraniano, e passam a noite num opulento hotel. Aí, por entre elaborados interiores que Bartas quase não nos deixa ver, desenrolam-se longos diálogos, sendo os temas principais do projeto postos a nu de um modo tão direto que é quase eletrizante. Ou talvez essa impressão seja apenas um resultado de todo o tédio que precedeu esses diálogos.

Para além de conversas sobre o estado do mundo e a perspetiva internacional sobre a guerra na Ucrânia, o interlúdio no hotel também proporciona a deflagração de conflitos internos na dinâmica do casal de namorados lituanos. No entanto, mesmo que sejam desferidos murros e olhares ressentidos, as personagens de “Frost” são demasiado apáticas e indefinidas para que o seu drama humano seja credível ou impactante. É evidente que, não obstante o esqueleto narrativo, Rokas e Inga são somente um veículo humano pelo qual Bartas leva os seus espetadores até à zona de conflito, onde perspetivas abstratas sobre a realidade da guerra são uma perigosa impossibilidade. Tal redução dos seus protagonistas a marionetas de carne e osso, que só servem de pretexto à movimentação da câmara através da Europa de Leste, poderá não ter sido algo decidido pelo cineasta, mas é efetivamente o que acontece no filme.

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Mesmo assim, apesar de todas as suas incontornáveis fragilidades, a última meia hora de “Frost” quase que compensa tudo o que veio antes. Bartas e a sua equipa puseram-se a si mesmos em enorme perigo quando decidirem rodar o seu filme nos reais locais de batalha, mas isso resultou em imagens de estonteante autenticidade, assim como no precioso testemunho de verdadeiros soldados. Ouvir homens cujo trabalho é recolher os cadáveres de soldados caídos é algo que estilhaça qualquer pátina de monótona apatia que o filme até aí possa ter conjurado, o que também levanta uma interessante questão: não teria sido mais eficaz fazer um documentário ao invés de uma ficção? Ancorar os últimos momentos do filme no sofrimento de Rokas perdido no meio de uma guerra, de repente bem real e em nada abstrata, é algo poderoso, mas nenhum desse poder se deve à construção de Rokas enquanto uma personagem com quem a audiência cria qualquer tipo de relação.

Uma boa justificação da abordagem de Bartas será o modo como a existência de uma narrativa lhe permitiram estruturar o filme como uma espécie de lento acordar. Atordoados pela inação em parelha com um esquema visual desinteressante, os espetadores vão sendo despertos para os argumentos do filme ao mesmo tempo que as duas personagens centrais vão também elas acordando para o perigo para o qual estão a caminhar. O movimento de abstrato para concreto, parece guiar o desenrolar de “Frost” mas, infelizmente, mesmo quando tenta mostra a visceralidade da guerra, o estilo pessoal de Bartas é um de indefinição onírica. Nos anos 90, quando o cineasta fez obras-primas como “A Casa”, a sua habilidade para conjurar atmosferas sonolentas recheadas de imagética sonhadora era bem aproveitada pelas propostas concetuais dos seus projetos. Agora, depois de uma série de esforços medíocres, Bartas parece querer expandir os seus horizontes temáticos e representativos, mas é prisioneiro de um estilo ossificado e teimosamente invariável.

 

Frost, em análise

Movie title: Frost

Date published: 22 de November de 2017

Director(s): Sharunas Bartas

Actor(s): Mantas Janciauskas, Lyja Maknaviciute, Andrzej Chyra, Vanessa Paradis, Boris Abramov

Genre: Drama, 2017, 132 min

  • Claudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO

“Frost” é um esforço cinematográfico bem-intencionado com alguns momentos de genuína genialidade que são, infelizmente, perdidos no meio de uma monumental dose de entediante mediocridade estética narrativa. Talvez Sharunas Bartas tivesse feito melhor em usar as suas filmagens para construir um documentário. Pelo menos, um filme sobre as filmagens deste filme parece ser uma proposta mais interessante do que o filme em si.

O MELHOR: Os testemunhos dos reais combatentes ucranianos.

O PIOR: A obsessão de Bartas por grandes planos.

CA

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