A modesta elegância de A Luz Entre Oceanos

Com precisas escolhas estilísticas e um toque de elegância moderna, o guarda-roupa de A Luz Entre Oceanos é um dos mais atraentes e cobiçáveis de 2016.

Apesar de já ter realizado filmes cheios de pirotecnia emocional, histórias que abrangem décadas e gerações, e enredos melodramáticos, Derek Cianfrance tem mostrado, até agora, um estilo onde a opulência visual raramente se manifesta. No que diz respeito ao vestuário das suas obras, os seus mais recentes trabalhos têm sido responsabilidade da figurinista Erin Benach, que este ano também foi responsável pelo inferno estilístico de The Neon Demon e pela modéstia sulista de Loving. Se há algo que caracteriza todas as suas contribuições para os filmes de Cianfrance, em específico, será a sua capacidade para construir guarda-roupas que atentamente definem personagens e comunidades mas que, no entanto, raramente são vistosos ou exigem a atenção do público.

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Apesar dessa consistente faceta caracterizante há algo muito importante a distanciar o trabalho de Benach em filmes como Blue Valentine e A Luz Entre Oceanos. Referimo-nos, pois claro ao facto deste mais recente filme ser uma obra especificamente situada num passado histórico e com uma geografia precisa, algo até agora ausente da filmografia de Cianfrance. Pela sua parte, Benach fez algo muito raro no mundo dos dramas de época, que foi recusar em absoluto o tipo de opulência associada à expressão costume drama. Não há qualquer fausto na reprodução de época feita por esta figurinista que, acima de tudo, construiu um guarda-roupa modesto, subtil, mas com suficiente elegância para tornar a história de Tom e Isabel, o faroleiro e a sua mulher, num dos mais belos romances do ano cinematográfico.

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Em termos históricos, Benach não fez nenhum ato de sacrílega estilização, sendo que as indumentárias, especialmente no início do filme, são bons exemplos das modas da Primeira Grande Guerra. Se há algo de importante a apontar será mesmo como as roupas pouco evoluem e são sempre, na sua generalidade, démodé em relação às grandes tendências da altura, afinal grande parte da narrativa já ocorre a meio dos loucos anos 20. No entanto, apontar tal escolha como uma falha seria erróneo pois, ao salientar tanto a sua falta de gosto cosmopolita e urbano, Benach salienta como as comunidades de A Luz Entre Oceanos são rurais e mais ou menos isoladas do burburinho do mundo moderno – isolamento é um dos grandes temas do filme.

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Uma escolha menos naturalista mas não por isso menos valerosa, é a paleta cromática usada para a maior parte das figuras, onde cinzentos, brancos, cremes e castanhos dominam o guarda-roupa, criando uma visão de grande harmonia e homogeneidade ao mesmo tempo que ligam as pessoas ao ambiente natural em seu redor, onde também brancos e cremes arenosos e cinzentos marítimos pintam as paisagens. Com as suas roupas elegantes, mas práticas e limitadas, em vários tons de castanhos e cinzas, Tom é o perfeito exemplo da conjugação destas duas facetas. Por um lado, a precisão militar das suas roupas, especialmente quando está em ambientes sociais, serve para recordar a audiência do seu traumático passado enquanto soldado, ao mesmo tempo que o uso de lãs em castanhos profundos constrói uma imagem de conforto e domesticidade atraente. Para além do mais, a sua indumentária e estilo pessoal nunca mostram qualquer evolução – as suas calças são particularmente anacrónicas – estando, como a sua psique, presos ao passado, mesmo no auge do seu fulgor romântico.

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Como complemento a esta figura de linhas militares, lãs acolhedoras e castanhos calorosos, Isabel é uma visão de etérea brancura e leves cremes. Quando a vemos ainda solteira, este esquema cromático já se instalou, se bem que em roupas muito mais restritivas do que as blusas, saias e até calças que ela passa a vestir quando se casa com Tom e vai viver com ele para a ilha de Janos. Como nas outras personagens, especialmente o seu marido, as roupas de Isabel pouco se alteram ao longo da narrativa, adotando as modas mais recentes somente em pequenos apontamentos como chapéus, casacos e outras peças menores. Isso tem a peculiar consequência de criar uma barreira entre ela e a comunidade que a viu crescer quando ela lá volta na segunda metade do filme, pois, apesar de démodé, as roupas da sua família e vizinhos nada têm que ver com os estilos de guerra que a jovem ainda enverga, ou com as peculiares idiossincrasias do seu estilo, como o uso constante de xailes – tal como as camisolas de Tom, isto é um sinal de acolhedor conforto e familiaridade.

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Essa noção de harmonia confortável apenas se exacerba quando testemunhamos a sua vida isolada em Janos, onde as regras do vestuário impostas pela sociedade são violadas sem preocupação. Isabel, por exemplo, dispensa o uso sufocante de rendas ou chapéus e luvas quando está na rua, chegando mesmo a passear-se em apenas uma blusa e um par de calças masculinas. Quando lhes chega, como um milagre bíblico, uma bebé numa embarcação perdida, Tom e Isabel formam com a pequena Lucy uma família e essa atitude é refletida nas suas indumentárias. Apesar de manterem consigo um brinquedo em forma de coruja que vinha com a bebé, as suas outras roupas são descartadas em prol de gorros, camisolas e conjuntos em lã creme tricotada que cria uma espécie de meio-termo entre os estilos complementares de Tom e Isabel. Basicamente, através destes apontamentos estilísticos, é difícil não olhar, mesmo que de relance, para estes três indivíduos sem neles ver uma harmoniosa e unida família.

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Só que, como bem sabemos, essa é uma família construída com base na mentira e no crime de nunca terem reportado às autoridades o sucedido. Como tal, quando vemos Hannah, a mãe biológica de Lucy (ou Grace), ela é como uma sombra acusadora em indumentária de luto. Anos passam e quando, pela primeira vez, Isabel é confrontada com o sofrimento que causou na vida desta mulher, Hannah veste-se numa roupa que não podia ser mais diferente da modéstia arenosa da mulher do faroleiro, estando coberta num chapéu moderno e um vestido em pesado veludo azul. Ao longo da restante narrativa, essa é precisamente a relação visual entre Hannah e o casal protagonista – as suas roupas são notoriamente mais modernas e em materiais ricos e pesados, sempre em tonalidades frias e escuras, enquanto eles parecem dois fantasmas, meio etéreos, presos no passado idílico.

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No final, A Luz Entre Oceanos será um filme que poucas pessoas vão recordar pelos seus espampanantes figurinos, mas o guarda-roupa traça um cuidado discurso estético e cria preciosas relações de familiaridade e alienação que apenas salientam e complementam o drama humano. De um ponto de vista mais superficial e fútil, há que admitir como as roupas de Tom e Isabel em Janos bem podiam ser colocadas num catálogo contemporâneo sem que ninguém estranhasse, tal é a modesta elegância e a atraente simplicidade pragmática do seu estilo.

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Se apreciaste esta análise do guarda-roupa de A Luz Entre Oceanos, não deixes de explorar a nossa rubrica Figura de Estilo.

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