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Mamã Kusters vai para o Céu, em análise

Depois de “Roleta Chinesa” , o Ciclo Rainer Werner Fassbinder da Leopardo filmes introduziu “Mamã Kusters vai para o Céu” (“Mutter Küsters’ Fahrt zum Himmel”)

UMA MULHER EM BUSCA DA VERDADE…!

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Prometi no artigo anterior, a propósito de CHINESISCHES ROULETTE (ROLETA CHINESA), 1976, um filme de Rainer Werner Fassbinder que incluo entre os que mais me desiludiu, que a seguir iria salientar uma das suas obras-primas, o notável MUTTER KUSTERS FAHRT ZUM HIMMEL (MAMÃ KUSTERS VAI PARA O CÉU), 1975. Disse igualmente que nestes dois projectos, separados por apenas um ano no que diz respeito a datas de produção, quem os visse em sequência cronológica ou não iria sentir e ver as diferenças que existem entre o assumir de valores alemães, cor alemã, personagens alemãs, drama e melodrama alemães, política e subversão alemãs, milagre e pesadelo alemães, no quadro de uma carreira onde o realizador demonstrou ser capaz de interpretar a sua identidade nacional sem no entanto perder o norte e a inegável capacidade de reflectir sobre a sociedade.

Mamã Küsters Vai Para o Céu
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Na verdade, ecos de um antigo filme alemão, intitulado MUTTER KRAUSENS FAHRT INS GLUCK (A VIAGEM DA MÃE KRAUSEN PARA A FELICIDADE), 1929, de Phil Jutzi, pairam sobre este MAMÃ KUSTERS VAI PARA O CÉU. Mas ao contrário do clássico influenciado pelas soluções políticas defendidas por Bertolt Brecht, a mãe Krausen e a mãe Kusters são dois seres isolados do mundo, sozinhas face ao seu destino e ao desespero existencial, mas ambas acabam por viver em quadros ficcionais que, sendo próximos, resultam na sua componente material distantes: porque, em meados dos anos setenta, Fassbinder preferiu interiorizar o combate de uma mulher pela verdade no pós-guerra, vinte anos depois da derrota nazi, obrigada que foi a equacionar as razões que levavam, numa democrática República Federal Alemã, beneficiária da reconstrução e das contradições do Plano Marshall, a ser projectado nas primeiras páginas da imprensa sensacionalista um acto aparentemente isolado de violência descontrolada numa fábrica de produtos químicos, o assassinato por parte de um operário de um funcionário superior ligado ao patronato. Esse operário, que depois de matar o Director de Pessoal se suicidou, não era outro senão o marido da senhora Kusters (interpretada por Brigitte Mira), pai de dois filhos, a saber, um rapaz simpático mas amorfo (Armin Meier), casado com uma arrivista (Irm Hermann) que só pensa no bem-estar e na sua parca carreira de horizontes curtos, e uma rapariga mais velha (Ingrid Caven), que ganha a vida numa espelunca onde o cheiro a sexo rasca se mistura com os vapores do álcool para esquecer. Esta pretensa cantora de cabaret não vive com a mãe, mas o irmão mora na modesta casa da classe operária onde a mãe Kusters se habituou a sobreviver no seio das suas rotinas diárias, o dia-a-dia cinzento da chamada fada do lar. Esta senhora, que nunca esperou ver o marido cometer aquele crime, e que para ela era um homem bom que ajudava os seus semelhantes sem pedir compensação pelos seus gestos solidários, logo após a notícia dos incidentes na fábrica será rodeada de uma quantidade de jornalistas que, quais abutres da comunicação, querem publicar uma história revista e ampliada dos acontecimentos. Na prática, fazer de um homem bom e das suas verdadeiras razões (que na verdade nunca saberemos ao certo) um monstro, não só pela dimensão do crime de que foi protagonista mas igualmente pelas atitudes comportamentais no quadro familiar, como indícios de violência doméstica e outras questões de fácil manipulação das emoções, narrativas canalhas destinadas a um público com pouco critério e sempre atento ao horror, ao drama forçado, ao quadro escabroso do vasculhar da vida alheia. Rainer Werner Fassbinder não poupa ninguém neste seu quase panfleto sobre a miséria moral do lado negro da sociedade capitalista, mas não se fica pela crítica do sistema plutocrático e entra no domínio da crítica dos que se apresentam como defensores de um outro sistema.

Mamã Küsters Vai Para o Céu
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Depois de se livrar da influência de um jornalista de um pasquim sensacionalista (Gottfried John), provavelmente um órgão de extrema-direita, que acabara de publicar um artigo miserável com a realidade distorcida do que muitos já apelidavam como o “assassino da fábrica”, repórter que se faz passar por amigo, sobretudo da filha da mãe Kusters, uma prostituta com quem passa a “viver”, a mãe Kusters será contactada por um casal de jornalistas de um diário comunista (interpretados por Karlheinz Bohm e Margit Carstensen) que não só lhe dão apoio como repõem a verdade dos factos sobre a personalidade do marido. Ela passa a ver neles um grupo em que pode confiar, mas com o andar da carruagem vai perceber que, não obstante existirem razões para os seguir e até para se inscrever no Partido Comunista Alemão, com o aproximar de eleições os dirigentes de esquerda afastam prudentemente as suas acções de campanha da viúva, precisamente, para evitarem qualquer associação ao “assassino da fábrica”. Sozinha, a braços com a sua incansável demanda pela verdade e pela reabilitação da imagem do marido, que gradualmente começa a ser retratado por alguns como um homem que agiu por sentir que estava certo nos seus ideais mas não soube controlar o modo como os concretizou, um revolucionário que desenquadrado politicamente acabou por cometer um crime sem consequências maiores na luta de classes e na afirmação do seu ponto de vista junto da classe a que pertencia, a mãe Kusters será contactada por um grupo radical de uma pseudo extrema-esquerda, vagamente anarquista, que a empurra para uma acção directa, a invasão das instalações do jornal que publicara um rol de mentiras denegrindo o seu marido. Tudo aquilo que a partir de então veremos resulta num mais do que acutilante depoimento político, por muito que Rainer Werner Fassbinder diga o contrário, no fundo evitando problemas com Deus e o Diabo. Os elementos do comando extremista arrastaram a mãe Kusters para a luta radical, mas não se deram ao cuidado de dizer que levavam armas consigo e que, para além da reposição da verdade, queriam a libertação dos presos políticos da então República Federal Alemã. No final, sobre um plano fixo da actriz, a produção descreve com a ajuda do guião escrito o que a seguir se passou e que não irei aqui descrever, apesar de qualquer um com um mínimo de experiência da leitura de obras de ficção poder imaginar o desfecho. Digo apenas que nesta maravilhosa cópia digital e restaurada, que na sua cristalina definição cromática nos faz viajar para a RFA dos anos sessenta-setenta, há uma surpresa final. Fabulosa inserção de um final alternativo, previsto na versão original, que só foi usado na versão que circulou nos Estados Unidos e que, ao contrário da poderosa versão europeia, apresenta um quadro geral de farsa, quase uma lógica de justiça poética na cruel representação do modo como o cidadão comum, no seu mais odioso cinismo, encara com indiferença a ameaça de uma ocupação dita “revolucionária” e como as soluções acabam afinal por ser aparentemente simples mas na verdade bem mais complicadas quando não somos capazes de alterar a atmosfera de alienação que julgamos nos irá salvar e redimir no futuro radioso da mediocridade instalada; no caso alemão, qualquer coisa como desistir da luta e da resistência para ir comer “Céu e Terra”, com morcela. Não digo mais nada, carreguem num link para saber o que vem a ser esse “Céu e Terra” ou “Himmel und Herde” gastronómico e, sem margem para dúvida, vão ver este filme absolutamente obrigatório.

Mamã Küsters Vai Para o Céu
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Mamã Küsters Vai Para o Céu, em análise
Mamã Küsters Vai Para o Céu

Movie title: Mutter Küsters' Fahrt zum Himmel

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Brigitte Mira, Ingrid Caven, Margit Carstensen, Irm Hermann

Genre: Drama, 1975, 113min

  • João Garção Borges - 95
95

Conclusão:

PRÓS: Excelente cópia digital, com cores que me fazem lembrar os livros e revistas que o milagre alemão ajudou a difundir há uns bons anos com a propaganda assumida, ou não, dos valores de uma nova Alemanha, na época dividida em dois blocos geoestratégicos bem definidos.

Belíssima Fotografia em 35mm e Eastmancolor, de Michael Ballhaus.

Notável Direcção Artística de Kurt Raab.

Magníficas prestações da maioria dos actores, especialmente de Brigitte Mira, no papel protagonista.

Na prática, um panfleto violento e sarcástico, sem a exposição gratuita da violência inerente ao início e fim da narrativa, um filme que Rainer Werner Fassbinder sabia que era controverso e que iria confrontar muitas pessoas e algumas ideias prevalecentes na sociedade alemã, assim como europeia, vinte anos após a reconstrução de um país erguido das ruínas do poder nazi e das cinzas e dos crimes da Segunda Guerra Mundial.

CONTRA: Nada.

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