©Leopardo Filmes

Ciclo Satyajit Ray | O Deus Elefante (Joi Baba Felunath)

“O Deus Elefante”, de Satyajit Ray, ganha destaque no nosso país com uma versão restaurada.

Nós: “SATYAJIT RAY…?”
Ele: “ELEMENTAR, MEU CARO ESPECTADOR…!”

Lê Também:   Nope, O filme e suas referências

Neste ciclo promovido pela LEOPARDO FILMES e pela MEDEIA FILMES, particularmente nesta fase dedicada a uma revisão no grande ecrã da obra do grande cineasta bengali, Satyajit Ray, sempre com o apoio de cópias digitais imaculadas de algumas das suas obras-primas, o filme que agora concentra a nossa atenção, JOI BABA FELUNATH (O DEUS ELEFANTE), 1979, foi rodado, nada mais, nada menos, do que doze anos após o último aqui recenseado, a saber, O HERÓI (NAYAK), 1966, exemplo notável da mestria do realizador na abordagem do mundo do cinema e da fragilidade das relações humanas patente no percurso desencantado dos deuses fabricados do firmamento cinematográfico da produção comercial da indústria indiana, no confronto com as suas preocupações existenciais e os seus potenciais admiradores. Perguntarão os leitores destas crónicas o que se terá passado entretanto nesses longos anos de grande actividade, que se mantém maioritariamente inédita em Portugal, e não só? Digo-vos eu que se passaram muitas e boas coisas, nomeadamente uma primeira ficção onde Feluna, a personagem do detective protagonista de O DEUS ELEFANTE, aparece pela primeira vez, num filme chamado SONAR KELLA, de 1974. Na verdade, estamos aqui perante um caso de adaptação de um romance policial da autoria do próprio Satyajit Ray, publicado no ano de 1971, e cuja versão fílmica ficou conhecida no ocidente, quando da sua distribuição nos Estados Unidos, por THE GOLDEN FORTRESS, ou seja, A FORTALEZA DOURADA. 

O Deus Elefante Satyajit Ray
©Leopardo Filmes

Deste modo, podemos dizer que O DEUS ELEFANTE aparecia no seu ano de lançamento com a marca da evolução na continuidade da carreira do cineasta, nomeadamente no contexto de um género, o filme de investigação policial que, apesar do resultado mais do que satisfatório, não foi o que deu a Satyajit Ray mais fama e proveito. Projectos aqui e além polvilhados com algum humor e uma constante, subtil mas acutilante observação social. 

Lê Também:   Na Penumbra, em análise

Sobretudo para aqueles que acompanharam na Índia o percurso singular do realizador, assim como para aqueles que nos mais diversos cantos do mundo seguiram com atenção as diversas circunvoluções criativas da sua obra, O DEUS ELEFANTE parecia mais próximo de um divertimento proposto pelo veterano do cinema bengali, uma espécie de desvio relativamente a matérias mais sérias e relevantes do ponto de vista sociopolítico, que ele sabia como poucos abordar de uma forma universal, não obstante se referirem aos parâmetros específicos da sociedade e realidade concreta da União Indiana, especialmente da sua Bengala natal. Pessoalmente, nada contra a perspectiva saudável de ver um realizador de espírito arejado a divertir-se com filmes que não deixava de reivindicar como seus e, neste caso, mais uma vez Satyajit Ray assina o argumento, a realização e a música, sublinhando o carácter autoral do projecto que finalmente vemos plasmado, plano a plano, sequência a sequência, na cópia síncrona distribuída para nosso deleite enquanto espectadores e cinéfilos. Dito isto, vamos ao filme e ao que ele nos oferece.

Nos filmes policiais, o segredo constitui a alma do negócio. Por mim, podem contar-me o filme fotograma a fotograma que vou vê-lo na mesma, muitas vezes com ainda maior gosto porque, sabendo os plots e contra plots, concentro as minhas energias na pura análise da estrutura fílmica, exercício que me seduz e muito. Mas respeito a opinião daqueles que querem ficar até ao último plano sem saber quem foi o responsável, como se costuma dizer, se foi o mordomo ou se foi um passarinho, ou melhor, um “passarão” que por ali passou a “voar”. Naturalmente, respeito os fanáticos do whodunnit, e percebo o gozo que o mistério e o suspense igualmente nos podem dar.

Por isso, irei apenas apresentar as personagens e indicar algumas sequências que considero imperdíveis e que denotam a capacidade do realizador para observar o quotidiano e a imensa diversidade de figuras que nele se inserem. 

Lê Também:   Nope, O filme e suas referências

Pradosh Mitter (nome de guerra Feluda, interpretado pelo grande actor Soumitra Chatterjee), acompanhado pelo primo Tapesh (que aparece em modo sorridente num papel defendido por Siddartha Chatterjee), e por um escritor de novelas policiais, Lalmohan Ganguly (uma notável composição de Santosh Dutta), viajam até Benares para aí participar nas festas do “Durga Purja”, um dos mais importantes festivais religiosos hindus, em honra da Deusa Durga. Instalam-se num hotel, aparentemente sobrelotado, onde irão partilhar o quarto com um famoso body builder, personagem deliciosa de um culturista ao estilo local, que se orgulha de possuir bíceps de 43 centímetros e meio, como precisa com ar de poucos amigos. Entretanto, Feluda e os seus companheiros cruzam-se com uma família que já viveu melhores dias mas que continua a ostentar o seu estatuto de classe privilegiada, os Ghosal, e o seu patriarca vai dar-lhes conta do roubo de uma pequena mas valiosíssima estatueta em ouro e pedras preciosas representando Ganesh, já adivinharam, o famoso Deus Elefante. Juntamente com a chegada a Benares de um pretenso homem santo, ficaremos a conhecer outra personagem que com ele se relaciona num plano discreto mas pouco recomendável, Maganlal Meghraj (interpretado com venenoso pormenor por Utpal Dutt), que se comporta como uma versão em vias de desenvolvimento dos chamados “Donos Disto Tudo” e que parece mais do que implicado no roubo da referida relíquia. Parece, mas as aparências neste género de ficção iludem e nem sempre batem certo. Há ainda uma criancinha, o mais do que provável herdeiro da família Ghosal, muito influenciada pelos heróis da banda desenhada ao estilo ocidental (Desde o Tintin ao Phantom), que parece mais inocente do que na realidade vem a ser. E podia acrescentar mais uma mão cheia de outras personagens secundárias que de uma maneira pontual ou intermitente darão o seu contributo na consolidação do processo narrativo. Dessas outras, os que virem este filme reparem no sabor crítico que Satyajit Ray emprega para descrever o cliente que no hotel dos forasteiros sistematicamente vem protestar com qualquer coisa, o verdadeiro “chato” que, embora com razão, afivela uma cara de pau e cuja expressão carrancuda não o deixa levar a água ao seu moinho. Ficamos com a sensação de que ninguém o leva a sério e ninguém liga ao que ele diz. 

E cito de novo e com mais pormenor a figura do culturista, interpretado por um verdadeiro campeão da modalidade, Moloy Roy, vencedor por diversas vezes do campeonato Mr. India e Mr. Asia, filho do famoso Mr. Universe de 1951, o impressionante Monotosh Roy. Sempre que aparece, o ecrã fica cheio com a volúpia muscular que ele sabe expor com estudada exuberância carnal. Parece grotesca, mas a sua personalidade denota uma componente de humanidade que me parece muito salutar ver salientada com bonomia por Satyajit Ray, que olha com respeitosa distância mas clara simpatia para estas estrelas improváveis dos circuitos atléticos, para estes genuínos heróis da cultura popular de massas.

O Deus Elefante
©Leopardo Filmes

Magnífica a sequência em casa do manhoso e, até certo ponto, suspeito Maganlal Meghraj, com a divertida esquiva do escritor policial em beber um sorvete com medo de ser envenenado, situação que deixa desesperado o próprio detective Feluna. Os expedientes que Lalmohan Ganguly utiliza e as voltas que dá para evitar a bebida, que só não faz rir o mais sisudo dos espectadores, são a prova de que o realizador, sempre que podia, não deixava de introduzir doses articuladas de humor e de observação corrosiva do ser e estar dos homens, neste caso perante esquemas que alguns desconhecem e que julgam ser estratégias perigosas e criminosas de gangsters encartados, de falinhas mansas, mas sem quaisquer escrúpulos.

Prometi e vou cumprir, nada mais adianto porque O DEUS ELEFANTE deve ser descoberto, minuto a minuto, por aqueles que desejarem ver ou rever um exemplo do cinema, mais do que alternativo, paralelo da produção bengali, uma obra só na aparência leve e descontraída de um cineasta que soube gerir a sua carreira sem medo de abrir as mais diferentes portas da produção cinematográfica.

O Deus Elefante, em análise
O Deus Elefante Poster

Movie title: Joi Baba Felunath

Date published: 19 de September de 2022

Director(s): Satyajit Ray

Actor(s): Soumitra Chatterjee, Santosh Dutta, Siddartha Chatterjee, Utpal Dutt

Genre: Drama, 1979, 112min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

 

PRÓS: Bela Fotografia a cores. Pela primeira vez neste ciclo veremos como a cor pode ser igualmente um factor criativo e construtor de atmosferas, que no entanto não nos faz esquecer o poder imenso do preto e branco das restantes obras apresentadas. Rigor nos enquadramentos, desenvoltura dos actores que seguramente beneficiaram da experiência do realizador para os ajudar a compor personagens que se passeiam por um género, o policial, sem mácula ou dificuldade de maior. Rigor na gestão das personagens protagonistas na relação dialéctica com as secundárias, onde a presença e precisão dos pormenores nos dão a ver mais do que seria de esperar no quadro de um filme com uma visível marca de autor mas onde este aproveitou, e bem, para se divertir, polarizando a figura de um detective oriundo da adaptação do seu próprio romance policial.

CONTRA: Nada.   

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply