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Nope, O filme e suas referências

Jordan Peele regressa ao grande ecrã como realizador com “Nope”, um filme protagonizado por Daniel Kaluuya, Keke Palmer e Steven Yeun.

E A CULPA, FOI DO MACACO?

Nope Daniel Kaluuya
Daniel Kaluuya em “Nope” | © 2022 Universal Studios. All Rights Reserved.

Num filme recheado de referências a outras produções e outras atmosferas cinematográficas, algumas recuperadas nos perdidos e achados de eras mais ou menos próximas ou mais ou menos distantes, não me parece difícil darmo-nos ao luxo de fazer a nossa minuciosa contabilidade pessoal e mesmo assim deixar de fora uma vasta série de pormenores que, na verdade e na maior parte dos casos, apesar de curiosos não fazem falta para a construção e consolidação da estrutura fílmica dos 130 minutos propostos pela realização de Jordan Peele no seu derradeiro exercício de estilo, mais um em forma de cinema com pretensões autorais. Desta vez, como anteriormente – recordemos GET OUT (Foge), 2017, e US (NÓS), 2019 – apelidou-o monossilabicamente NOPE (2022), sendo que a distribuição em Portugal nada acrescentou e manteve essa “referência” original. Nada contra, até porque há quem diga que NOPE não será apenas a expressão verbal de um sentimento comum de medo ou estranheza perante uma determinada situação que nos intriga, mas também a sigla de “Not Of Planet Earth”. De facto, há gente com mais imaginação do que o próprio realizador. Mas vamos ao que interessa, sobretudo para sabermos se vale ou não vale a pena acompanhar os protagonistas de NOPE e seguir os caminhos que o argumento nos indica, mesmo que não sejam sempre os mais directos. Primeiro, logo a abrir somos confrontados com uma sequência que, na minha opinião, prometia ser a porta de entrada num universo povoado de inquietações primitivas, as que sublinham a fragilidade do humano face ao lado mais sombrio da nem sempre previsível psicologia animal. Nessa sequência, Gordy, um macaco habitualmente divertido e fofinho, vedeta de uma sitcom intitulada “Gordy’s Home”, aparece aqui como um autêntico predador disposto a dar cabo do décor onde se gravam ao vivo os episódios, e pelo meio acaba literalmente com os actores que com ele contracenam, aplicando-lhes uns potentes e sonoros murros. De repente, o seu olhar, que até aí estava distraído com as consequências da violência gerada, quebra a chamada quarta parede e volta-se para nós, espectadores, com uma acutilância que, garanto, na sua frieza digital mete realmente medo. Mais para a frente, a montagem regressa a esta sequência e amplia a sua duração para além do olhar simiesco e ameaçador que Gordy nos lançara. Saberemos então que o animal deu conta de qualquer coisa que lhe escapou, ou seja, um miúdo de origem asiática que fazia parte do elenco e se escondera debaixo de uma mesa. Por uma vez, Gordy não parece querer mal algum aos que o rodeiam mas, na conclusão da sequência, Gordy será executado. Mais adiante veremos esta criança, agora adulta, na pele de Ricky “Juke” Park (Steven Yeun), dono de um parque de diversões super-kitsch onde, entre outras atracções, o público pode assistir a um misterioso espectáculo que envolve um cavalo e sugere um contacto com OVNIs e outros intrigantes fenómenos oriundos do espaço. Resta dizer que este show nocturno (que faz ecoar na nossa memória o CLOSE ENCOUNTERS OF THE THIRD KIND (ENCONTROS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU), 1977, do senhor Steven Spielberg) fica próximo do rancho onde vivem dois irmãos, os ditos protagonistas, a saber, OJ Haywood (interpretado com olhos de carneiro mal morto por Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (interpretada a mil rotações por minuto por Keke Palmer).

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Nope Jordan Peele
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Para melhor enquadrar esta proximidade e limpar o ruído que pudesse existir entre dois mundos que vivem simultaneamente perto e longe, ou seja, o rancho dos cavalos para a indústria cinematográfica e audiovisual que funciona como ganha-pão da família Hayhood e o rancho das ilusões e dos cavalinhos de circo de Ricky, Jordan Peele mostra por antecipação flagrantes da vida real de cada irmão, sozinhos ou não, começando por eliminar a presença do pai, Otis Heywood (Keith David), morto em circunstâncias na altura incompreensíveis mas posteriormente reveladas, constituindo um dos pontos de maior relevo a favor do filme. Tratou-se de uma chuva de moedas, chaves e outros objectos que, a partir das nuvens e com aquilo que na física se designa por movimento uniformemente acelerado, adquiriu o poder e impacto de um projéctil letal. Nuvens, aliás, que vão ser peças fundamentais do que futuramente iremos não só ver como ouvir, sobretudo os gritos angustiados de pessoas que parecem encurraladas numa situação limite, algures no céu. Em especial, uma formação nebulosa que não se mexe, não muda de direcção e, nitidamente, esconde algo de muito, mas mesmo muito bizarro. De vez em quando, essa “coisa” sai do refúgio gasoso, e o coração dos protagonistas, assim como o nosso, bate com mais força. Nada como fazer passar uma sombra negra por detrás de uma superfície branca e iluminada pela luz do Sol para deixar com pele de galinha o protagonista mais destemido e o espectador mais sensível. Mas Jordan Peele não se fica por aqui, vai antes acumulando matéria sobre matéria, como quem não quer deitar fora as ideias que vai formulando. Desde referências a um passado reivindicado pelos irmãos, que sustentam ser herdeiros do jockey negro que vemos numa famosíssima cronofotografia do pioneiro Eadweard Muybridge (1830-1904), até ao SCORPION KING (O REI ESCORPIÃO), 2002, que OJ vai citar corrigindo a irmã sobre um contrato passado e, imaginem, o acumular de referentes até dá direito a uma homenagem ao “Akira Slide” que ficou célebre no anime AKIRA, produção japonesa de 1988. Já agora, a experiência levada a cabo por Eadweard Muybridge, nome maior da fotografia e da chamada pré-história do cinema, que mostra o galope de um cavalo cavalgado por esse jockey negro e anónimo, nunca foi realizada com o recurso ao vídeo como se lê nas legendas, mas sim a uma série conjugada de fotografias obtidas através de exposições sucessivas e por uma bateria de câmaras alinhadas para os devidos efeitos. Que diabo, bastava pensar um pouco e recordar que o Zoopraxiscope, o aparelho concebido pelo genial inglês e que permitiu diversas apresentações públicas de formas primitivas de cinema, data de 1879 e as referidas apresentações duraram até 1895. Filme, era o que se usava na altura. Revelação de uma imagem latente numa imagem visível através de processos químicos. Regressando a NOPE, os argumentistas quiseram ainda juntar aos protagonistas já conhecidos outros com participação secundária e que basicamente vão fazer aquilo que se chama na gíria “acrescentar mais” para no fundo resultar menos ou, na melhor das hipóteses, ganhar uns minutos e sair mais do mesmo. Por um lado, iremos conhecer um rapaz de nome Angel Torres (Brandon Perea) que consegue penetrar no universo fechado dos irmãos e instalar, com a sua relutante cumplicidade, um sistema de vigilância que permita captar o que a partir de um certo momento surge aos olhos de quem quer que veja o filme, como a génese dos acontecimentos que antecedem o grande final. Por outro, os irmãos convencem um Director de Fotografia (Michael Wincott), meio carrancudo e com voz de bagaço, a filmar qualquer avistamento supostamente vindo do espaço, e o profissional habituado a documentários radicais inventa um sistema para filmar o anunciado fenómeno, curiosamente uma câmara de manivela que usa película IMAX, numa palavra, uma geringonça que não precisa de bateria para funcionar. Tecnologias do passado e do presente, conjugadas para, digamos assim, sustentar uma boa causa. Isto porque a criatura que anda a esvoaçar por cima do rancho e que suga as vítimas humanas ou animais para a sua boca, qual gigantesca cloaca, quando começa a atacar, suga igualmente as fontes de energia eléctrica. Podemos dizer que a associação destas duas figuras integradas na acção desenvolvida pelos irmãos, nomeadamente a perseguição de algo inusitado e que escapa ao seu controlo imediato, constitui o ponto em que a estrutura do filme recomeça a fazer sentido e, a partir dali, o estilo visual e as referências usadas anteriormente irão diluir-se no combate sem quartel a um monstro que irá, antes desta fase da narrativa, começar por destruir o rancho do improvável cowboy Ricky “Juke” Park na sequência de um dos seus shows apocalípticos. Ricky apostava num mundo de fantasia, mas subitamente foi engolido pela pura, dura e crua realidade que até ali não passava de uma especulativa presença no firmamento.

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Jupe Gordy's House
Steven Yeun como ‘Jupe’, em “Nope”| © 2022 Universal Studios. All Rights Reserved.

Nesta fase, o estilo Terror impera mais do que o Fantástico ou até o Thriller de Ficção Científica. Resta saber se os espectadores, até aí inundados de referências, vão levar a sério o suspense que se lhes dá como síntese de um puzzle onde pelo menos cinquenta por cento do guião precisava de um script-doctor para o conceber numa plataforma mais eficaz e económica do mero ponto de vista ficcional. Infelizmente, sentimos que Jordan Peele não conseguiu cortar as gorduras de um argumento onde elas pesam, e quando segue em frente geralmente atira o barro contra a parede esperando que ele caia no sítio certo. Será caso para dizer, isso só no cinema. Todavia, há momentos que funcionam, como já dissemos, e um exemplo é a sequência inicial e a sua recuperação futura para nos dar a continuidade do olhar do macaco Gordy num contexto que altera a nossa primeira percepção do ataque e destruição promovido pelo símio. Há ainda uma sequência lindíssima, com a luz prateada da Lua iluminando o Santa Clarita Valley na Califórnia e um cavalo ainda mais belo que se chama GHOST. Há, e não podemos esquecer, o rosto de Daniel Kaluuya que nada nos diz e nada nos esconde. Parece um rosto digno para reanimar o famoso efeito Koulechov. Tudo adquire significado não por causa do plano que vemos mas em função do plano anterior ou do seguinte que nos mostram. Há um “desenho gráfico” do monstro que no seu esplendor parece um bordado demoníaco, pairando ameaçador sobre o mundo e a civilização como a conhecemos. Nem a boca voraz em forma de serpentinas esvoaçantes, que nada apresentam de extraordinário, faz baixar o horror que sabemos existir para além desse filtro devorador, como se fossem os filamentos venenosos de uma medusa de grandes proporções. Muitas das referências fílmicas, audiovisuais e não só, fazem com que o filme permaneça na memória, nem que seja por esse exercício simples e fascinante de as encontrar e interpretar no contexto narrativo. Só para acrescentar mais algumas que não referi anteriormente, a imagem do monstro associada ao “anjo bíblico” de uma série de anime japonesa como “Neon Genesis Evangelion”, 1994. Diga-se que a cultura Pop dos anos noventa foi uma das principais influências para a construção dos décors, para o guarda-roupa, para a definição da paleta de cor na Direcção de Fotografia, para a criação das atmosferas retro patentes em muitas das sequências, para a colecção de adereços que polvilham os espaços que as personagens habitam. Numa delas vemos mesmo umas pouco saudosas VHS a serem usadas, neste caso para gravar as imagens do sistema de vigilância, instalado no rancho onde a maior parte da acção decorre.

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Nope
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Destaco igualmente a excelente mistura de som. De facto, uma das componentes mais bem conseguidas de NOPE, responsabilidade assumida, e bem, pelo engenheiro de som Johnnie Bird.

Em suma, um filme que no campo do entretenimento cumpre os mínimos não vai seguramente para o caixote de lixo do cinema descartável. Consegue ser mais interessante do que muitos blockbusters estreados ou por estrear, apesar das suas evidentes e cumulativas fragilidades. Há uns anos seria um filme quase ideal para uma noite de Verão num Drive-in perto de si. Nos dias de hoje, entre a rarefeita dimensão do streaming e a amplitude do IMAX, nesta luta de escalas que baliza o mercado do cinema comercial, não sei se lhe podemos encontrar o lugar a que realmente pertence. Por mim, aposto sempre nos maiores ecrãs. Resta saber se eles estão sempre próximos dos públicos a que NOPE se destina.

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Seja como for, NOPE podia e devia ser um filme produzido a partir de cinquenta por cento das referências e da matéria que Jordan Peele acumulou, para além dos limites. Excesso que o levou a concentrar a atenção no pormenor, dispersando o fluxo narrativo nas mais diferentes direcções, antes de finalmente cair de pé nas sequências finais. Por isso, a pergunta que faço no cabeçalho do artigo, volto agora a fazê-la: E a culpa, foi do macaco? E permitam-me ensaiar uma resposta: Quem sabe? Num filme onde cabe o Rossio e a Betesga, porque não?

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