"Alien" | © MOTELX

MOTELx ’19 | Memory: The Origins of Alien, em análise

Em “Memory: The Origins of Alien”, o cineasta Alexandre O. Philippe propõe-se a investigar a História e o legado da obra-prima de Ridley Scott que, em 1979, nos mostrou que, no espaço, ninguém te ouve gritar. O filme integra a secção de documentários do MOTELX.

Por que é que gostamos de ser assustados? Face à popularidade do cinema de terror há que se fazer tal questão. Há pessoas que veem o cinema como uma fuga, um mecanismo que entretém e diverte, que permite ao espectador perder-se numa fantasia escapista bem distante das complexidades e angústias da realidade vivida. Para tais pessoas, o terror talvez não faça sentido. A não ser, é claro, que encaremos ser assustados como uma forma de entretenimento. As audiências que todos os anos fazem esgotar inúmeras sessões do MOTELx certamente parecem crer que sim. O susto é entretenimento.

Quando vemos uma tragédia ou um melodrama, de facto há alívio no derramamento de lágrimas, mesmo que rara seja a pessoa que ativamente procura infelicidade na sua vida. Há segurança no ato de experienciar tais angústias através de uma ficção. Essa mesma segurança existe quando confrontamos o medo, quando vemos refletidos no grande ecrã algumas ansiedades que talvez nem conheçamos de forma consciente. Algum do melhor terror é aquele que nos permite vislumbrar uma materialização daquela sensação indefinida que temos quando acordamos de um pesadelo e não nos conseguimos lembrar das suas especificidades.

© Exhibit A Pictures

O ser humano procura ordem e as artes dramáticas, de certo modo, permitem-nos ordenar o caos que nos vai na cabeça. O medo é uma parte essencial do ser humano, pelo que o seu lugar na Arte é necessariamente privilegiado, deixando-nos dar ordem narrativa e forma concreta àquilo que é intangível. O cinema permite-nos tornar o aterrorizante desconhecido em algo que continua a assustar, mas, pelo menos, é compreensível, é conhecido. Quimicamente, teremos outras explicações que incidem sobre impulsos cerebrais, sobre dopamina e adrenalina e a excitação que vem com o perigo, mas não é bem com isso que aqui nos preocupamos.

No fim, há algo de catártico em ver os nossos piores pesadelos e saber que não são mais que uma imagem projetada no ecrã. De facto, o alívio das lágrimas que brotam da tragédia fictícia, o suspiro dado depois de um susto chocante, o sorriso que fica na cara depois de uma rica gargalhada, tudo isso é a catarse. Tal conceito, na sua edificação moderna, remonta à Antiga Grécia e às ideias de Aristóteles sobre o Teatro. Por isso mesmo, há algo de diabolicamente perfeito no modo como “Memory: The Origins of Alien” passa tanto tempo nas ruínas de um anfiteatro grego. Para entender o apelo de “Alien”, há que primeiro entender aquilo que os gregos já entendiam, há que entender a catarse.

Na sua pesquisa documental, Alexandre O. Philippe não tenta explicar o apelo de todo o cinema de terror, mas somente de “Alien”. Quando ele evoca a tradição da Antiguidade Clássica, sua filosofia e seus mitos, fá-lo para estabelecer uma ligação entre o inquietante filme e todo um legado cultural que remonta há milénios. Tanto a história como o titular oitavo passageiro da nave Nostromos são sintetizações de medos ancestrais e iconografias ainda mais velhas. Não é que os cineastas e artistas envolvidos tenham feito tais referências de modo consciente, mas elas existem e contribuem para o legado e impacto do filme.

Tais palavras podem sugerir um documentário exotérico e preocupado somente com questões de pensamento abstrato, mas Philippe sabe bem como balançar o facto histórico e a divagação filosófica. Desde o processo de escrita do argumento até ao laborioso e fedorento processo de filmar a famosa cena em que a personagem de John Hurt “dá à luz” um alien, tudo isso é documentado pelo cineasta. Assim, “Memory” não só nos mostra o porquê do sucesso do filme, como nos mostra o modo como esse sucesso foi alcançado e perdura até aos dias de hoje. Melhor ainda, tudo isto não é idolatria vácua pelos cineastas responsáveis por criar a obra-prima que é “Alien”.

memory the origins of alien critica
© MOTELX

Na conjetura cultural em que nos encontramos, ser-se fã de algo costuma implicar um abandono do pensamento crítico sobre o objeto da obsessão. Philippe rejeita tais paradigmas e desconstrói o filme que tanto ama com iguais quantidades de paixão e sagacidade crítica. Há, por exemplo, considerações ambivalentes sobre a direção em que Ridley Scott está a levar o franchise e fala-se do tipo de sexismo intrínseco à indústria de Hollywood que levou Ellen Ripley a ser encarada como uma heroína tão incomum e inovadora. Até as maladias intestinais do argumentista e as psicoses sexuais do artista suíço H.R. Giger têm o seu papel na criação do filme. O cinema é das Artes mais coletivas que temos, mas muitos são os documentários que seguem narrativas de heróis individuais e se esquecem disso.

É certo que “Memory” privilegia a perspetiva de certas pessoas e não é um filme perfeito, mas tem a decência de assumir os limites da sua visão e de aludir à grandiosidade do seu sujeito. Uma grandiosidade que tem vindo a obcecar pessoas há anos com seus pesadelos de sexualidade masculina pervertida e uniões ímpias entre organismo e maquinaria. Uma grandiosidade que é impossível de explicar por completo numa crítica e mesmo num filme documental. Há muitas razões pela qual incontáveis ensaios e livros têm sido escritos sobre “Alien” e “Memory” propõe-se a tornar tal obsessão cultural um pouco mais compreensível para aqueles que nunca matutaram sobre tais assuntos. De certo modo, tal como o terror nos ajuda a entender os nossos pesadelos, também “Memory” nos ajuda a compreender “Alien” um pouco melhor.

Memory: The Origins of Alien, em análise
motelx memory the origins of alien critica

Movie title: Memory: The Origins of Alien

Date published: 15 de September de 2019

Director(s): Alexandre O. Philippe

Genre: Documentário, 2019, 95 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

“Memory – The Origins of Alien” é um primoroso documentário sobre a primeira grande obra-prima de Ridley Scott. O filme tem os seus limites, mas é um bom retrato do esforço coletivo de fazer o primeiro “Alien” e as mitologias e iconografias culturais que levaram a que os seus monstros fossem tão memoráveis.

O MELHOR: A clara paixão que o realizador sente pelo filme que aqui se propõe a examinar, estudar e explicar.

O PIOR: É notório como Philippe decide não abordar algumas das críticas mais ásperas feitas contra o filme, tanto pelos contemporâneos da sua estreia como por audiências de agora. A sexualização de Ripley na sequência final, por exemplo, nunca é abordada por “Memory” e a continuação das sequelas também é deixada de fora. Enfim, para falar de tudo isto, o documentário provavelmente precisava de ser uma minissérie.

CA

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