"Inu-Oh" | © Science SARU

MONSTRA ’23 | Inu-Oh, em análise

O cinema japonês está em destaque nesta mais recente edição do MONSTRA, grande festival de cinema de animação em Lisboa. “Inu-Oh,” nomeado para os Globos de Ouro no ano passado, é um dos títulos mais deliciosos do programa. Trata-se de um musical glam rock que testa os limites do desenho e do bom senso.

Nos últimos anos, Yuasa Masaaki tem-se vindo a confirmar como um dos mais importantes cineastas no panorama do anime. Em 2013, quando fundou os estúdios Science SARU, o realizador viria a despoletar uma produção desenfreada que, até hoje, conta com cinco longas-metragens e quatro séries de televisão. Por isso mesmo, ninguém ficou surpreendido quando a Bienal de Veneza programou “Inu-Oh” na sua competição Horizontes, sendo que reputação e prestígio não faltam a esta filmografia. O choque veio quando o artista consagrado usou a festividade como plataforma para anunciar uma pausa no seu trabalho.

Não sabemos quando Yuasa Masaaki voltará ao grande ecrã com novo filme, mas, em jeito de despedida temporária, “Inu-Oh” certamente serve como argumento para explicar a exaustão do animador. Por outras palavras, a longa-metragem é uma supernova de ideias, cada uma mais mirabolante que a outra. Parece que temos uma divindade do anime declarando guerra contra os nossos sentidos, disparando canhões de imaginação armadilhada diretamente para a cara do espetador. O radicalismo formalista segue a mesma onda dos filmes passados da Science SARU, mas há um jeito febril no modo como tudo se desenrola a alta velocidade, quase com violência.

inu oh critica monstra
© Science SARU

Essa agressão diz-se metafórica quando não é literal – estamos perante uma história com muito sangue derramado, carne massacrada e muito sofrimento. Trata-se também de um conto em volta da dualidade, esculpindo a narrativa em torno de duas figuras unidas pela expressão do artista. Somos introduzidos ao primeiro dos protagonistas e aquele que confere ao filme o seu título num prólogo ritualista contado por um músico de biwa. Há seis séculos, em tempos de feudalismo feroz, a ambição leva o mais aclamado bailarino Noh da região a traçar acordo com um demónio. Faz-se sacrifício humano, mas não é suficiente para saciar as forças do além.

Assim nasce Inu-Oh ao pai dançante. Ele é um castigo no lugar da criança, disforme com um braço gigantesco, cara partida e escamas ao invés de pele. Pouco vemos da criatura, tratada como um animal pelo patriarca envergonhado e sua trupe teatral. Algures, na zona costeira, outro pai desgraça o filho na busca por algo maior. O menino é Tomona que, com o homem mais velho, é contratado para resgatar uma espada misteriosa nas profundezas do mar nipónico. Sem saber o poder do artefacto, desembainha-se a espada e um rasgão corta o corpo do pai em dois e desfaz os olhos do rapaz.

Como que guiados por algum fado cósmico, ambos os meninos traumatizados encontram refúgio na arte. Inu-Oh assiste, escondido, às aulas que o pai dá a bailarinos aspirantes, seus filhos mais velhos e sem deformidades. Assim se saram partes do seu corpo em milagres gerados pela euforia, pela inspiração, pela expressão humana elevada a ato celestial. Tomona, por seu lado, também se esconde e vira a vida para a arte, mudando o nome para se esquivar aos espíritos que o perseguem e lhe sussurram aos ouvidos. Rebatizado Tomoichi, o cego aprende a tocar biwa e ganha a vida como músico itinerante.

A magia acontece quando os estranhos se cruzam, a amizade florescendo entre os párias feitos aliados. Tomoichi muda novamente de identidade, tornando-se Tomari e usando as vozes do além para contar a verdadeira História que moldou o reino. Enquanto ele canta verdades desconfortáveis, Inu-Oh ilustra a palavra com dança do outro mundo. À medida que eles ganham fama e aperfeiçoam a sua arte, as maladias físicas do bailarino desaparecem. Contudo, ser célebre chama a atenção dos nobres guerreiros que querem manter a História escondida por detrás de propaganda, impingindo censura. Tomoari recusa a pressão dos poderios, mas será que o seu parceiro fará o mesmo?

Deixamos as respostas finais como surpresa, mas fica a garantia que, no meio da folia, “Inu-Oh” é uma tragédia com um epílogo que só pode ser considerado feliz ao nível espiritual. Contudo, temos de revelar outros mistérios para analisar a obra. Nomeadamente, há que se falar das decisões estilísticas tomadas por Yuasa e companhia limitada. O texto, adaptado de um romance de Hideo Furukawa renega a convenção cinematográfica para se assemelhar mais aos ritmos de um bardo cantante e a economia de gesto presente no Noh. Exposição é rara e quem não prestar atenção, ir-se-á perder num abrir e fechar de olhos.

A montagem sublinha o sentido de rapidez e cacofonia, mas é a animação que encontra ordem no pandemónio. As imagens têm poesia inerente a si mesmas, especialmente quando aliadas à música extraordinária que Yoshihide Ôtomo compôs. Apesar da natureza antiga do cenário, “Inu-Oh” repensa o conto através dos paradigmas do glam rock, usando o biwa no lugar da guitarra elétrica. Brinca-se com questões de identidade de género e expressão sexual, teatralidade encenada para a câmara e uma muito ténue barreira entre o antes e o agora, o mundo dos mortos e a realidade dos vivos.

inu oh critica monstra
© Science SARU

Tentando descrever o filme sem cair no paradoxo é impossível. Temos aqui um exemplo de cinema que segue o espírito do passado, mas fá-lo de maneira hipermoderna. Temos um enredo a rebentar pelas costuras com detalhe, mas uma apresentação dramatúrgica a tender para o minimalismo. Temos velocidade imensa e um filme capaz de parar toda a história na apreciação do concerto rock. Quiçá a melhor forma de conjugar o impossível seja admitir que, acima de tudo, “Inu-Oh” é uma expressão de amor para com a performance, seja ela feita com base no corpo retorcido ou no instrumento musical, na palavra declamada ou no desenho animado.

O melhor de tudo é mesmo o modo como a animação se consegue impor acima das outras linhas expressivas sem as apagar. Yuasa está na plenitude da sua mestria, usando os interlúdios de glamour resvalando em heavy metal para testar os limites do cartoon. A plasticidade é imensa, sendo tão bela no clímax canoro como no simples quadro da chuva caindo sobre um telhado curvado. O design de personagens e seu movimento é ainda mais extraordinário, procurando um certo realismo de proporção humana em constante perigo de cair na fantasia. Sentimos o controlo do artista, mas também percecionamos uma imaginação liberada. Tal como o espetáculo orquestrado pelas suas personagens também “Inu-Oh” é, já por si, um milagre.

Inu-Oh, em análise

Movie title: Inu-Oh

Date published: 20 de March de 2023

Director(s): Yuasa Masaaki

Actor(s): Avu-chan, Mirai Moroyami, Tasuku Emoto, Kenjirô Tsuda, Yutaka Matsushige

Genre: Animação, Drama, Fantasia, Musical, 2021, 98 min

  • Cláudio Alves - 90
  • Maggie Silva - 75
83

CONCLUSÃO:

Na mesma medida em que anuncia uma pausa no seu cinema, Yusua Masaaki deleita-nos com o milagre de “Inu-Oh.” A animação não podia ser mais arrojada e até o argumento prima pela ousadia, mesmo quando isso pode dificultar a experiência do espetador desatento. Este é um daqueles eventos cinematográficos que promove a imersão num sonho, quiçá um pesadelo, de pintura digital animada, glam rock e fantasia pura e dura.

O MELHOR: O modo como a animação enlouquece nessas sequências musicais, quer seja no modo como replica mecanismos do teatro ou nas alternativas mais fantásticas.

O PIOR: A insanidade narrativa, sua velocidade e lado feroz, levam a uma experiência disfuncional que pode confundir muita gente. Não nos admirávamos que muita gente saísse do cinema sem saber o que aconteceu em cena.

CA

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