"O Rapaz e o Monstro" | © Outsider Films

MONSTRA ’23 | O Rapaz e o Monstro, em análise

Dentro da programação dedicada ao cinema japonês, a MONSTRA deste ano inclui vários títulos que marcam a história recente do anime. Nomeadamente, encontramos no festival, uma seleção representativa dos estúdios mais importantes da última década. É neste paradigma que nos deparamos com o trabalho de Mamoru Hosoda e “O Rapaz e o Monstro.”

Em 1979, Hayao Miyazaki estreava a sua primeira longa-metragem, “Lupin III: O Castelo de Cagliostro.” Não só foi esse o início de uma das carreiras mais importantes no mundo da animação nipónica, como também serviu de influência para inúmeros espetadores que cresceriam para se tornarem, também eles, cineastas. Uma dessas mentes inspiradas foi a de Mamoru Hosoda, então um menino de doze anos. Na busca do sonho, ele estudou pintura e candidatou-se a trabalho no estúdio Ghibli, casa de Miyazaki, seu ídolo. Essa colaboração nunca chegaria a acontecer, nem nesses tempos de juventude nem mais tarde, quando Hosoda era nome apontado para a realização do “Castelo Andante.”

Ao invés da Ghibli, foi nos estúdios da Toei que o animador viria a ganhar nome e desenvolver um estilo muito próprio, atingindo seus primeiros laivos de sucesso com dois filmes do franchise “Digimon.” Dentro dos paradigmas do anime televisivo no salto para o cinema, também viria ele a realizar para a série “One Piece,” mas só a independência artística conseguiu consagrar o nome de Hosoda enquanto autor. Deixada a produção da Toei, o cineasta pode explorar a sua visão criativa em plena liberdade, realizando “A Rapariga Que Saltava Através do Tempo” para a Madhouse. O filme mudou-lhe a carreira, até mesmo o rumo da sua vida.

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Por um lado, estava aí uma afirmação de valores estéticos e narrativos, os temas que se viriam a repetir em obras futuras e as tonalidades em constante eco na futura filmografia. O movimento é fluido, personagens de desenho simples com grande expressividade física, entre a anatomia realista e uma energia que só faz mesmo sentido no anime. Histórias imortais, muitas vezes baseadas em arquétipos antigos na vertigem do antiquado, reformatadas pelo radicalismo técnico. São os seus filmes peças de exuberância cinematográfica, apurados às emoções fortes da juventude e um gosto particular pelo casamento entre o mundo mundano e irrealidades no foro da fantasia, quiçá da ficção-científica.

Em 2011, Hosoda estabeleceu o seu próprio estúdio, batizado Studio Chizu, e é lá que tem desenvolvido este cinema com cunho muito pessoal. O segundo trabalho dessa nova casa de animação, estreada no seguimento das “Crianças Lobos,” confirma todas as características típicas do realizador. Talvez até seja a sua apoteose, tendo sido o primeiro filme que Hosoda assinou sem a colaboração de mais nenhum coargumentista. Tudo em “O Rapaz e o Monstro” brota da imaginação do seu principal autor. Não que a história, pelo menos no seu primeiro ato, prime pela originalidade. De facto, trata-se de uma coleção de clichés que qualquer fã de anime vai reconhecer.

Estamos perante a história de uma criança que, triste e maltratada, encontra refúgio num mundo paralelo, um universo mágico mesmo ao lado do nosso. Também é aquele conto que Hollywood muito adora sobre um homem brusco que aprende a ser melhor pessoa quando se vê forçado a ser pai para alguma rapaziada sem amparo. Essas são as linhas principais do quadro, se bem que Hosoda lá lhe acrescenta algumas especificidades fruto da idiossincrasia cinematográfica. Veja-se o prólogo, todo animado em silhuetas formadas por chamas brilhantes. Aprendemos pela narração que, num mundo habitado por animais antropomorfizados – ou talvez pessoas animalizadas – a força do guerreiro é lei.

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Como tal, quando o grande mestre e líder da nação decide transcender a vida mortal e tornar-se deus, é pela qualidade na batalha que o seu substituto será encontrado. Há dois candidatos, Iozen e Kumatetsu. O primeiro é um javali feito homem de família, adorado pela comunidade e sempre respeitoso do seu dever enquanto pedagogo das gerações futuras. O segundo, por outro lado, é um ser ursino de poucos amigos, mal-educado e sempre em fúria, que não tem interesse nenhum em educar um aprendiz. Contudo, um aprendiz cair-lhe-á na vida e, por ordem quase-divina, Kumatetsu vê-se numa posição pseudo parental para com Ren, um menino humano de nove anos.

Com o seu pai biológico em parte incerta e a mão perdida para doença terminal, o rapaz é praticamente órfão quando, numa noite chuvosa, descobre portal para o Reino dos Monstros. De Tóquio a outro mundo, Ren e Kumatetsu passam anos juntos, demarcando uma divisão de atos mesmo a meio da fita. A primeira metade observa a meninice e a gradual transformação do homem-urso em alguém devoto ao seu filho. Na segunda parte, Ren volta a por pé no mundo dos humanos, esticando os limites da sua dinâmica com o guerreiro urso, explorando uma crise identitária com cheirinhos de romance.

Verdade seja dita, Hosoda safa-se melhor como argumentista naquela primeira parte mais dependente da fórmula habitual. Quando tenta incluir elementos de disrupção, perde-se alguma da elegância narrativa e sabotam-se algumas personagens pelo caminho. Contudo, as emoções subjacentes estão sempre bem definidas, estabelecendo o caminho para um clímax grandioso o suficiente para justificar todo o mecanismo forçado. Até uma metáfora literária por via de “Moby Dick” ganha fôlego quando possibilita uma batalha fantástica, onde as sombras que se escondem no coração de todos nós saem à rua para fazer guerra.

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O argumento desequilibrado assim se redime pelo sentimento, pelas personagens bem concretizadas e pelo elenco sublime. Também se redime pela animação que, como em todo o filme de Hosoda, é um esplendor de fazer arregalar os olhos. Há uma brilhante simplicidade no desenho cromático, definindo cada figura em blocos de cor sem grande variação, de modo a que todo o foco está nas fisionomias mutáveis – ora por magia ou por hormonas – e nos contrastes do cenário. Vejam-se as composições em pintura suave onde vivem os monstros, o modo como se opõem ao realismo da Tóquio contemporânea. Veja-se a animação tradicional levada aos epítetos da plasticidade em cenas de combate, estilhaçada pelo uso de modelos tridimensionais no grande final. Por muito comovente que “O Rapaz e o Monstro” possa ser, os aplausos são conquistados pelo trabalho audiovisual mais do que pela narrativa.

O Rapaz e o Monstro, em análise
O Rapaz e o Monstro

Movie title: Bakemono no ko

Date published: 24 de March de 2023

Director(s): Mamoru Hosoda

Actor(s): Kôji Yakusho, Aoi Miyazaki, Shôta Sometani, Suzu Hirose, Kazuhiro Yamaji, Mamoru Miyano, Kappei Yamaguchi, Haru Kuroki, Momoka Ôno, Sumire Morohoshi

Genre: Animação, Ação, Aventura, Fantasia, 2015, 119 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Sem grande radicalismo narrativo ou riscos tomados, “O Rapaz e o Monstro” é mais um triunfo de Mamoru Hosoda. O dinamismo visual exige admiração, enquanto um elenco de personagens tridimensionais exalta os ânimos e conquista o coração espetador. O cliché anda de mãos dadas com a inovação, lugar-comum e imaginação fértil, passado e futuro unindo forças em paradoxo animado.

O MELHOR: A animação é um milagre, sem, no entanto, chamar atenção para o seu virtuosismo. Só mesmo quando os efeitos especiais estão mais expostos é que o espetador é convidado a perder-se no esplendor, as chamas da memória ancestral e uma baleia emergindo da sombra.

O PIOR: A componente romântica não funciona, servindo apenas como forma de levar Ren a voltar, uma e outra vez, ao mundo dos humanos. Existiriam outras formas de testar a união familial dos dois protagonistas sem reduzir Kumatetsu a uma figura tão secundária como aqui acontece. Também temos de apontar como, com quase duas horas, “O Rapaz e o Monstro” é demasiado comprido e repetitivo.

CA

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