MOTELX ’21 | Gaia, em análise

Um exemplo de terror ecológico, “Gaia” de Jaco Bouwer é um pesadelo sul-africano e foi uma das obras em exibição no 15º MOTELX.

A Terra está a morrer e nós somos os assassinos. Contudo, a Natureza prevalece e, no fim, todos sabemos que a Humanidade morrerá antes do planeta expirar. Olhando para anos recentes, cheios de catástrofes climáticas e desastres naturais, pragas e pestes, quase sentimos que a própria entidade planetária nos tem na lista negra. Sentimos que estamos a ser punidos, a sofrer a vingança de uma Natureza vitimada e já farta do degredo. Há quem veja isso através do prisma da ciência. Outros seguem o caminho da religião. Em “Gaia”, as duas linhas de pensamento colidem com efeitos devastadores.

Escrito por Tertius Kapp e realizado por Jaco Bouwer, o filme começa com aquela imagem já cliché de um mundo virado de pernas para o ar. Planos feitos por drone revelam-nos expansões verdes na África do Sul, densas florestas atravessadas por rios serpentinos. Nesta introdução, o céu está em baixo de uma abóbada vegetalista, as árvores ganhando a força portentosa de uma catedral cavernosa. Por momentos, a floresta parece pronta a precipitar-se sobre as nossas cabeças. Mesmo que esta imagem seja lugar-comum, não negamos a eficácia nem a justificação dramatúrgica.

motelx gaia critica
© MOTELX

Acontece que os planos voadores não são somente mecanismos estilísticos, mas um reflexo do engenho invasor das personagens. Dois guardas florestais aventuram-se pelo rio e usam um drone para registar a paisagem circundante. Sua missão é explorativa, deixando várias máquinas pelo arvoredo, documentação da vida animal e vegetal da reserva de Tsitsikamma. De facto, é o drone que lhes traça o fado, quando se despenha algures além da margem fluvial. Na procura da máquina, o par separa-se, perde-se e cai de cabeça numa tragédia primordial.

Gabi é a protagonista da fita e sua desventura entra em ignição quando o pé fica preso numa armadilha. Um pico de madeira afiada entra-lhe pela carne adentro, incapacita-a e deixa-a caída no chão daquele inferno verde. Na inconsciência causada pela dor, ela sofre os primeiros de muitos sonhos que atormentam o resto de “Gaia”. Nas visões oníricas, bem reminiscentes de “Aniquilação”, malignidades incertas despertam da flora e crescimentos fungais desabrocham da pele como uma infeção cutânea in extremis. É tão atroz quanto belo, pinturas vivas de sofrimentos inimagináveis.

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Uma mistura de magia digital e maquilhagens práticas ajuda a reforçar a visceralidade irreal deste rasgo de horror orgânico, terror do corpo. O companheiro de Gabi será muito mais dilacerado por esses fenómenos da humanidade trucidada pela planta. Entretanto, ela é salva pelas pessoas que haviam construído a armadilha. Eles são Barend e Stefan, pai e filho e eremitas. Juntamente com Gabi, descobrimos o seu peculiar mundo de isolamento civilizacional. Longe de tudo, especialmente das tecnologias da modernidade impura, o duo aparenta ter encontrado um equilíbrio entre o ser humano e o mundo natural.

Pelo menos, aprenderam a aceitar a crueldade da Mãe Natureza. Regularmente, os homens defrontam-se contra criaturas estranhas, animais mutados por um fungo monstruoso que vive no âmago da floresta. Aos poucos, vamos entendendo a escala da besta, uma inteligência floral que infeta e controla os animais, incluindo humanos, que têm a infelicidade de ser afetados. Lutar é fútil, sendo que a derrota é inevitável. Assim é que Barend e o filho funcionam, fazendo sacrifícios a esta divindade ímpia na esperança de com ela viverem na simbiose.

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© MOTELX

É aqui que a fé e a ciência se intersetam e alcançam uma comunhão sanguinária. Se Gabi tenta entender a escala do acontecimento e achar solução para a tirania natural, Barend moldou suas crenças até de lá nascer um fanatismo onde o fungo é Deus máximo. O texto de Kapp começa por ser muito ambíguo, um tédio subtil mascarado de enigma. No entanto, à medida que o filme avança, “Gaia” a história dos três perdidos no éden pervertido ganha proporções cada vez mais bíblicas. Chegado o clímax, não podia ser mais claro que vemos uma metamorfose do Antigo Testamento em que o papel de Isaac é interpretado por Barend.

Adoraríamos poder dizer que esta junção da Bíblia e o terror ecológico funciona bem, só que “Gaia” estica a metáfora demasiado além do que é sustentável. Além disso, há um óbvio limite no que se refere à estratégia visual de Bouwer. Depois da terceira sequência sonhadora, o espetador já sabe todo o repertório do realizador e o restante filme é um retorno cíclico ao mesmo tipo de cena, uma e outra vez. A espiral da repetição deixa uma ideia nervosa na mente. “Gaia” funcionaria melhor como uma curta do que como longa-metragem. Chega um ponto, em que o arsenal concetual esgota e o poço de ideias seca. As plantas da trama podem crescer com infinita força, mas “Gaia” perde o gás a meio dos seus 96 minutos.

Gaia, em análise
gaia motelx critica

Movie title: Gaia

Date published: 13 de September de 2021

Director(s): Jacob Bouwer

Actor(s): Monique Rockman, Carel Nel, Alex van Dyk, Anthony Oseyemi

Genre: Drama, Terror, Fantasia, 2021, 96 min

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO:

“Gaia” oferece uma proposta arrebatadora de terror ecológico. Com imagens que pedem muito emprestado a “Alienação” e um guião bilingue com traços bíblicos, o filme suscita medos primordiais que se enraízam na alma do espetador, florescendo numa rosa de inquietação tóxica. Contudo, a repetição enfática impede o trabalho de chegar ao máximo potencial dos seus conceitos. A experiência final é anémica e superficial.

O MELHOR: Imagens singulares ficam na memória, como uma flecha na garganta, um corpo subsumido a artefacto fúngico. Também temos que admirar a prestação febril de Carel Nel como Barend. Sua trajetória narrativa nem sempre convence, mas o fervor do sentimento trespassa sempre, sem mácula ou dúvida.

O PIOR: A metáfora bíblica torna-se demasiado literal na segunda metade da fita. Além disso, há uma tendência corrosiva para repetir estratégias cénicas e explicar em demasia os mistérios do texto.

CA

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