"Ashkal" | © MOTELX

MOTELX’ 22 | Ashkal, em análise

“Ashkal” de Youssef Chebbi teve a sua estreia mundial no Festival de Cannes, integrando a programação na Semana dos Realizadores. Nesse contexto, a obra recebeu grande aclamação crítica e tem vindo a fazer nome como um dos grandes filmes de terror de 2022. Passando pelo circuito dos festivais à escala internacional, este trabalho tunisiano até ganhou um prémio em Neuchâtel. O MOTELX acolheu a obra em território nacional, integrando o filme na secção Serviço de Quarto.

Um mistério do princípio ao fim, “Ashkal” afirma-se como um dos filmes de terror mais enigmáticos dos últimos tempos. O realizador tunisino Youssef Chebbi casa dois tipos de cinema em incerto matrimónio, forçando a aliança entre o filme artístico típico do circuito festivaleiro e o terror mais lúgubre. Movendo-se a ritmo glacial e judicioso com respostas às questões que levanta, “Ashkal” será uma prova de fogo para o espetador impaciente, ou para aquela audiência que deseja ver todo o código decifrado antes de rolarem os créditos finais. A procura de significado é aqui constante, uma busca sem fim que transcende a ação no grande ecrã e segue a audiência para fora da sala de projeção.

ashkal critica motelx
© MOTELX

Tudo se enquadra dentro de um cenário ora fantasmagórico, ora inacabado – ruínas que jamais foram algo que não escombros. São estes os Jardins de Carthage, um projeto de desenvolvimento urbanístico em Túnis, capital da Tunísia. Sua construção teve início durante a presidência de Presidente Zine El Abidine Bem Ali, mas a Primavera Árabe que deitou abaixo o regime também pôs fim às obras. Desde 2011, os esqueletos de betão armado são como um monumento à revolução, assombrações de outros tempos e marcas de uma nação congelada no tempo. São símbolos do povo que tenta avançar no mesmo movimento em que se vê forçado a considerar os crimes do passado. São lembranças dessa necessidade de se impor justiça de forma a abrir as portas para o futuro.

Alguns investimentos de gente endinheirada têm vindo a ressuscitar alguns desses gigantes cinzentos, reiniciando a construção a passo lento. Enquanto o final das obras não chega, Túnis é assim pontuada por limbos transitórios, espaços liminares onde nada acontece, mas tudo pode acontecer. Enquanto obra cinematográfica, “Ashkal” nasce das tensões visuais que Chebbi encontra na arquitetura incompleta da capital, concebendo inúmeras composições marcantes onde se contrasta a pequenez humana com a grandiosidade esquálida das estruturas. É algo inquietante, mas belo também. É uma contradição que suscita a dúvida e sussurra um mistério no nosso ouvido muito antes da narrativa propor os seus enigmas particulares.

A confusão começa antes do filme ter início, quando investigações internas semeiam o caos e a suspeita dentro das forças policiais. Filha de um dos dirigentes do comité investigador, Fatma vê-se encurralada entre dois mundos e dois códigos de honra. Por um lado, ela é polícia. Por outro, é crente numa justiça que transcende a autoridade do uniforme. No contexto profissional, a única paz encontra-se no apoio soturno de Batal, detetive seu colega e parceiro mais velho. São estes dois que, numa manhã fria, são encaminhados até ao centro dos Jardins de Carthage, onde um corpo imolado foi descoberto. O evento repete-se uma e outra vez, levantando cada vez mais dúvidas, iluminando teias de corrupção e podridões escondidas na sombra.

Poder-se-ia pensar que a justaposição do cinema político, o policial e o terror, se manifesta exclusivamente nas figuras de Fatma e Batal, mas as próprias mortes transbordam carga simbólica. Afinal, lembremo-nos de como começaram os movimentos revolucionários na Tunísia, na faísca que deflagrou a primavera de mudança. Tudo começou há mais de uma década quando Mohamed Bouaziz se ateou a si mesmo em chamas como sinal de protesto, imagem que assombra todo o filme e se ressurecta nas muitas cenas de imolação. Junte-se a isso o modus operandi meio sobrenatural do assassino e temos um conto de traços folclóricos, a História ecoando no presente em forma de pesadelo.

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Ou talvez pesadelo seja uma palavra muito forte. Chegadas as passagens finais de “Ashkal,” a morte no fogo metamorfoseou-se de terror a incógnita, de buraco negro a um berço para a génese de algo maior que nós. Trata-se de um gesto destrutivo, sem dúvida, mas quiçá seja da destruição que um novo mundo nasce, qual fénix emergindo das cinzas. Do mal, vem o bem e há que matar o passado para ver o futuro. A realização de Youssef Chebbi é também ela um desses milagres onde se dizima e dá vida no mesmo instante. Por seu lado, a fotografia de Hazem Berrabah negoceia a elegância brutalista do betão com sua opressiva presença. Os rasgos de labaredas contrastam com a cinza constante, uma aberração cromática que empolga e amedronta. É aquele ponto médio entre o calamitoso e o deslumbro, o repugno e o magnético. Como que enfeitiçados pela chama, “Ashkal” puxa por nós, mas temos de ter cuidado. Podemos queimarmo-nos se estivermos demasiado próximos, se estendermos a mão ao fogo e nos rendermos ao fulgor da obliteração.

Ashkal, em análise

Movie title: Ashkal

Date published: 16 de September de 2022

Director(s): Youssef Chebbi

Actor(s): Fatma Oussaifi, Mohamed Grayaâ, Rami Harrabi, Hichem Riahi, Nabil Trabelsi, Bahri Rahali, Oumayma Meherzi, Ghalia Jebali, Aymen Ben Hmida, Adel Monam Khemis, Barrie Marleen

Genre: Crime, Drama, Thriller, 2022, 92 min

  • Cláudio Alves - 78
78

CONCLUSÃO:

Para muitos espetadores, o mistério que nunca se resolve e a moral por esclarecer irão frustrar. Contudo, aprecia-se um filme tão obstinadamente opaco, tão rigoroso, desafiador para com a audiência e, ao mesmo tempo, tão belo. “Ashkal” fascina e surpreende, hipnotiza e seduz como a sereia que aliciava os marinheiros a cair num fim violento. O cinema de terror com carga política tende a caracterizar-se pela alegoria demarcada, mas algo mais esbatido e ambíguo também tem o seu valor. Pelo menos, algo é certo – é daqueles objetos artísticos que fazem refletir.

O MELHOR: As composições arquitetónicas, a veia onírica no argumento e os contrastes cromáticos presentes na fotografia.

O PIOR: Os momentos mortos e algumas personagens a mais. Quiçá uma maior ênfase nas qualidades abstratas do filme ajudaria a refinar a experiência do espetador.

CA

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