"Corta!" | © MOTELX

MOTELX’ 22 | Corta!, em análise

Este ano, o Festival de Cannes abriu com “Corta!,” também conhecido como “Coupez!” e “Final Cut.” O filme de Michel Hazanavicius é o remake francês de uma comédia de terror que obteve grande sucesso no Japão – “Mortos, Vivos, Câmara, Ação!” ou “One Cut of the Dead.” Antes de chegar aos cinemas portugueses, o filme teve antestreia nacional no contexto do MOTELx, onde integrou a secção Serviço de Quarto. Em Portugal, “Corta!” estreia dia 17 de novembro.

A melhor maneira de apreciar o novo filme de Michel Hazanavicius será vê-lo sem qualquer referência do original, uma experiência às cegas onde o perigo da comparação não está presente. Infelizmente, não foi nessas condições que encontrámos “Corta!” pelo que é difícil evitar o contraste mental com o filme de Shin’ichirô Ueda. Desse exercício interno, surge o azedamento da experiência cinematográfica e aquelas questões eternas levantam-se, fazem-se ouvir, e não cessam até todo o pensamento consumirem: Será que este remake é necessário? Acrescenta algo ao primeiro filme? Vale enquanto obra singular? Temos tristeza em admitir que a resposta a estas questões é a mesma – não.

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© MOTELX

Seguindo o modelo estabelecido por “Mortos, Vivos, Câmara, Ação!,” a fita de Hazanavicius começa com um ostentoso plano sequência com duração a exceder a meia hora. Nesta espécie de curta-metragem falseada dentro da longa real, deparamo-nos com a história de uma equipa de filmagens a gravar um reles terror de zombies em antigo lugar de experiências secretas. Enfadado com a falta de autenticidade dos seus atores, o realizador decidiu invocar verdadeiros mortos-vivos, apelando ao ritual antigo e à história do sítio durante os tempos da guerra. Daí se despoleta uma história de sobrevivência em contexto meta-cinematográfico, com a atriz incompetente sobrevivendo a tudo e todos naquela moda habitual da ‘final girl.’

Só que é difícil apreciar a cena ou mesmo o vigor técnico, sua desnuda ambição, quando a obra é tão deliberadamente má. No original japonês, a sequência inicial era uma homenagem aos filmes de série-B nipónicos mais do que uma paródia cruel, deixando-se levar pelo amor ao terror reles, feito sem orçamento, mas com muita convicção. Por isso mesmo, o primeiro ato no filme de Ueda vale por si e entretém sem ser necessário um contexto acrescido. No caso de Hazanavicius, não somos convidados a rir com as personagens ferrenhas, mas sim a troçar a sua incompetência.

Deste jeito, o primeiro movimento da obra é caracterizado pela disfunção, pelos tempos mortos e pausas sem fim, ritmos frouxos e percalços apalhaçados demais. A única piada original que não se baseia no escárnio do espetador para com as personagens em cena devém da fidelidade extrema para com o original. Tal decisão só fará sentido, mais à frente, mas fica o facto que, neste ato inicial, todas as personagens interpretadas por atores franceses em cenário gálico na sua língua nacional se batizam com nomes japoneses. A incompatibilidade de informações gera o desconforto e faz florescer a risada, é certo.

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Ao mesmo tempo, o esquema paródico dá a sensação que as palavras da outra cultura são hilariantes só por si – um travo de xenofobia que está longe de ser exemplo único do filme. Enfim, passando a primeira fase da narrativa, Hazanavicius chega ao drama por detrás das cenas, volta atrás no tempo de produção e mostra-nos finalmente alguma originalidade. Mesmo dentro da ficção de “Corta!,” as personagens estão encarregues de rodar um remake do triunfo japonês – o filme fracassado que serve de abertura – revelando uma panóplia de inseguranças pessoais e histórias entrelaçadas. O principal conflito existe dentro do seio familiar e é, de longe, a parte mais conseguida do remake.

Aqui sim, o trabalho tem pulso e tem vida, parecendo informadp por real sentimento e rasgos de sinceridade. Quiçá isso se deva à natureza autobiográfica da fita. Veja-se o detalhe do casting, como a esposa do cineasta fictício e sua filha são interpretadas pela esposa e pela filha de Hazanavicius. A relação entre o pai realizador e a rapariga que também tem sonhos de fazer cinema é especialmente bela, desenrolando-se com muita melancolia e ternura também. Oxalá esse mesmo tenor se manifestasse no desenho das personagens enquanto indivíduos, seu humor, seus valores. Só para que se entenda o espírito da coisa, consideremos a cena em que a moral de “Corte!” se estabelece e sublinha.

Acontece quando acompanhamos a filha para outro local de filmagens, onde, trabalhando em assistência, ela tenta manipular uma atriz menor a chorar. Tal como o realizador da ficção dentro da ficção, ela procura autenticidade a todo o custo. Ao invés de assumir esta faceta como um golpe de comédia negra, “Corta!” posiciona a filosofia artística como uma verdade absoluta e derradeiro catalisador para o final feliz. Não é que Hazanavicius e companhia estejam em falta de alguma autocrítica, mas que a sua manifestação ao longo do argumento peca pela inconsistência. Julgando pelas risadas do público, estas fragilidades não matam a piada, mesmo que a amarguem.

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© MOTELX

Se calhar estamos a ser demasiado sensíveis. Se calhar estamos a comparar em demasia o filme com o seu antecedente. Enfim, perdoem-nos a falta de generosidade nesta ocasião, mas o nosso amor por “Mortos, Vivos, Câmaras, Ação!” é tão grande que não pode ser ignorado. Do mesmo jeito em que o filme japonês nos pareceu uma carta de amor ao cinema enquanto esforço coletivo, esta alternativa falada em francês troça desse mesmo amor e escreve uma carta de ódio em jeito de piada seca. Essas não serão as intenções dos cineastas, sendo que Hazanavicius tem vindo a fazer a carreira através do pastiche cheio de afeto e até ganhou um Óscar por tais trabalhos. Neste caso, contudo, a força motriz do projeto não se regista com claridade na sua forma final.

Corta!, em análise
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Movie title: Coupez!

Date published: 15 de September de 2022

Director(s): Michel Hazanavicius

Actor(s): Romain Duris, Bérénice Bejo, Finnegan Oldfield, Matilda Anna Ingrid Lutz, Sébastien Chassagne, Grégory Gadebois, Lyès Salem, Jean-Pascal Zadi, Simone Hazanavicius, Luàna Bajrani, Yoshiko Takehara

Genre: Comédia, Terror, 2022, 110 min

  • Cláudio Alves - 40
40

CONCLUSÃO:

Aconselhamos ao leitor ir ver “Corta!” e a fazer os seus próprios julgamentos, especialmente se este for o seu primeiro encontro com a comédia terrorífica de  Shin’ichirô Ueda. Sem estar sob a sombra da comparação, é possível que “Corta!” brilhe mais e se faça vingar.

O MELHOR: A imagem final é tão eufórica como a do original. Também se aplaudem as contribuições fotográficas de Jonathan Ricquebourg e a música de Alexandre Desplat.

O PIOR: O tom ácido do humor, a redundância do projeto, o exagero frouxo.

CA

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