"A Mulher" | © Cinemundo

A Mulher, em análise

A Mulher” é a história de uma esposa cansada de viver na sombra do marido, em que Glenn Close oferece uma verdadeira tour-de-force merecedora de Óscar.

Diz-se que, por detrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher. “A Mulher”, adaptado do romance homónimo de Meg Wolitzer, é um filme construído quase totalmente com base nesta ideia, tendo mesmo a ousadia de a apresentar como se fosse algo inesperado ao invés de um cliché bafiento. É claro que, independentemente da banalidade do conceito, a presunção de excelência feminina como secreto condutor e até necessidade para a glória masculina que se celebra em praça pública constitui algo de valor e importância. Nos dias que correm, uma história sobre o fenómeno com uma boa dose de complexidade psicológica e indignação feminista revelar-se-ia como um filme emblemático. “A Mulher” não é esse filme.

As boas intenções do projeto são tão inegáveis como o pedigree artístico da sua equipa de cineastas, mas há algo de reacionário a permear quase todos os aspetos do filme. A primeira cena, por exemplo, é uma imediata sintetização dos grandes problemas e mais-valias em evidência. Tudo começa à noite, no quarto de um casal americano cuidadosamente decorado em tons de azul glacial e cinzas que se repetem no guarda-roupa da mulher, mas não no do marido. Ele é um escritor conceituado e não consegue dormir enquanto espera pela potencial chamada do Comité do Prémio Nobel a anunciar a sua vitória. Tal é o seu nervosismo que Joe Castleman acorda a esposa, Joan, e pressiona-a a ter sexo com ele. De manhã, a chamada auspiciosa manifesta-se. Joe ganhou o Prémio Nobel da Literatura.

A Mulher critica
Os temas do filme são bastante relevantes no contexto sociopolítico atual.

A fotografia é baixa em contraste ou saturação cromática e as composições tudo fazem para enfatizar o trabalho dos atores acima de qualquer outro elemento. Ao estilo dos mais enfadonhos filmes de prestígio que todos os anos parecem existir só para que estúdios e distribuidoras possam enviar comunicados de imprensa sobre a quantidade de Óscares para que foram nomeados, “A Mulher” é um exercício em displicência pela componente audiovisual do cinema.  Ninguém poderia arremessar contra este filme a falaciosa crítica do ‘estilo acima do conteúdo’, pois todo o edifício da obra é subjugado à glorificação do seu texto e as performances dos atores.

Debaixo dessa pátina de virtuosismo prosaico, temos alguns detalhes discretamente astutos como a relação entre décor e figurino e a montagem durante a chamada telefónica, mas todos estes elementos são um sussurro. Pressupõem-se que a atenção do espectador está completamente focada nas personagens, pois não há nada mais para ver. De facto, a dinâmica entre Joe e Joan é curiosa e contém a sugestão de muita história partilhada. Especialmente no ato sexual, filmado com grande modéstia por Björn Runge, tem-se a noção que Joan está habituada a submeter-se aos caprichos de Joe e até encontra prazer assim como poder sobre o marido. Tudo orbita em volta de Joe, mas é Joan quem manda.

Tal dinâmica matrimonial não é assim tão estranha quanto isso no panorama do cinema, mas os atores complicam a equação emocional. Jonathan Pryce fá-lo através de uma prestação desprovida de nuance, onde o ator pinta Joe com pincel grosso e faz questão de exacerbar todas as suas piores qualidades até ao ponto em que a audiência se une em prece silenciosa para que Pryce saia de cena. Ele é arrogante e grita a sua arrogância a alto e bom som como se estivesse a atuar numa grande sala de teatro com más condições acústicas e fizesse questão que as pessoas com os piores lugares não perdessem a essência da personagem. À medida que o filme avança, esta tendência maximalista do ator só se intensifica e se torna mais incoerente com a narrativa e suas camadas de mentiras escondidas à vista de todo o mundo.

O horror da prestação de Pryce pode ser um obstáculo difícil de superar, mas ninguém irá ver “A Mulher” pelo ator. Desde que o filme foi visto no Festival de Toronto, que toda a conversa à sua volta se tem focado singularmente em Glenn Close. A atriz, já por seis vezes indicada para o Óscar, parece estar numa boa posição para finalmente ganhar o homenzinho doirado mais cobiçado de Hollywood e, ao contrário de tantas outras lendas vivas do cinema que ganham prémios numa fase avançada da carreira, a vitória seria amplamente justificada pela qualidade da prestação. Joan Castleman é um dos maiores feitos da atriz, especialmente quando consideramos quanto a adaptação da página para a tela retirou claridade à personagem.

A Mulher critica
Glenn Close merece o Óscar!

No livro, a história é experienciada do ponto-de-vista de Joan e suas motivações são exploradas ao contrário do filme que é obcecado em apresentar a mulher como uma figura de mistério e segredos bem enterrados. Esta opacidade psicológica força Close a encontrar interioridade num argumento desprovido de tais qualidades. Ela mais do que resolve o problema, sublimando universos de contradições pessoais e artísticas nos seus olhares, gestos e na cadência estudada com que Joan repete guiões sociais bem ensaiados. Quando as insinuações de um jornalista interpretado por Christian Slater e a adulação obsequiosa depositada sobre Joe se tornam insuportáveis, a atriz demonstra a sua mestria ao dar a entender como Joan questiona as suas escolhas de vida sem dizer uma única palavra.

A maior parte da narrativa de “A Mulher” decorre em hotéis faustosos e nas ruas geladas de Estocolmo, onde o casal viaja para todas festividades associadas com o Nobel. Nesse palco nórdico de contenção e frieza, Close é como um vulcão perfeitamente disfarçado de montanha pacífica. Pouco a pouco, a sua superfície treme, e vemos a lava a borbulhar perto da orla. Chegado o clímax do filme, estamos perante uma erupção violenta. Nunca desobedecendo aos ditames do argumento, Close consegue mesmo encontrar gradações de comédia por entre a torrente destrutiva da sua explosão, mas, enquanto espectadores, sentimos todo o tormento pelo qual Joan está a passar com a visceralidade de uma queimadura de primeiro grau.

Mais do que um Óscar em honra do trabalho como atriz, Glenn Close merece ser celebrada pelo seu heroísmo ao tentar resgatar o filme e todas as audiências infelizes que se encontram no cinema a ver “A Mulher”. Face à grandiosidade dela, as maiores fragilidades do filme quase deixam de importar. Contudo, não obstante a pirotecnia interpretativa desta titã do grande ecrã, é impossível ignorar totalmente os flashbacks desnecessários que se manifestam pelo filme como uma infeção pustulenta, a aparente insipidez de livros que a narrativa propõe como obras revolucionárias, a banalidade formal de todo o projeto, a aura de autoimportância poeirenta é claro, o furacão de más decisões que é a prestação de Jonathan Pryce. Por detrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher, mas, por detrás desta grande atriz, há é um filme terrível.

A Mulher, em análise
A Mulher

Movie title: The Wife

Date published: 18 de October de 2018

Director(s): Björn Runge

Actor(s): Glenn Close, Jonathan Pryce, Christian Slater, Max Irons, Elizabeth McGovern, Harry Lloyd, Annie Starke, Alix Wilton Regan, Grainne Keenan, Karin Franz Körlof

Genre: Drama, 2017, 100 min

  • Cláudio Alves - 55
  • José Vieira Mendes - 75
  • Inês Serra - 60
  • Miguel Pontares - 58
  • Virgílio Jesus - 80
  • Catarina d'Oliveira - 67
66

CONCLUSÃO

“A Mulher” é o típico filme de prestígio de Hollywood. Um objeto cronicamente reacionário, tanto a nível estético como narrativo, embalsamado pelo seu próprio prestígio e noções desmesuradas de autoimportância. Glenn Close é a salvação do filme, mas nem ela consegue ofuscar todos os seus problemas. A atriz pode merecer um Óscar, mas Jonathan Pryce devia era ser nomeado para o Razzie.

O MELHOR: Glenn Close!

O PIOR: Algumas mudanças inexplicáveis do livro para o cinema e o modo como o filme trata a grande reviravolta que, entretanto, todos os espetadores já adivinharam.

CA

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