Mulheres do Século XX, em análise

Em Mulheres do Século XX, Mike Mills criou aqui uma celebração feminista de incomparável humanismo e uma carta de amor e admiração à sua mãe.

mulheres do seculo xx

A uma primeira e muito superficial análise, Mulheres do Século XX de Mike Mills parece ser mais um indie americano cheio de irritantes preciosismos e manientas afetações. Afinal, trata-se de uma obra que começa com uma elaborada montagem acompanhada de uma filosófica narração em voz-off, onde Dorothea (Annette Bening) fala do nascimento do seu filho e de como lhe prometeu que a vida seria algo grande e cheio de imensuráveis mistérios e maravilhas. No abstrato, tudo isso é muito bonito e reminescente de muitos outros filmes, até que nos deparamos com um adolescente confuso e complicado a querer desvendar esses mistérios e desfrutar dessas ditas maravilhas mesmo sem as entender.

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Esse desfiladeiro que separa gerações é um dos pontos centrais de Mulheres do Século XX, um filme sobre uma mãe a tentar entender o filho e que, pensando-se incapaz de o educar sozinha, alista a ajuda de duas mulheres mais novas. Tudo isto decorre na Califórnia de 1979 e esses detalhes espácio-temporais são de imensa importância devido a dois fatores. Primeiro, temos a natureza autobiográfica do projeto que é uma homenagem de Mills à sua mãe e às mulheres que marcaram o seu crescimento. Em segundo, existe a faceta, menos conclusiva, que explora o modo como nós, enquanto seres humanos, definimos e somos reciprocamente definidos pelo tempo e lugar em que existimos. Todo o elenco de coloridas personagens, extremamente bem definidas enquanto indivíduos, exemplifica e vive essas mesmas ideias.

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O mais fascinante e importante destes indivíduos é, como seria de esperar, a matriarca. Dorothea, nascida antes da Grande Depressão, cresceu na sua miséria, viveu, amou, teve um filho, sofreu desgostos amorosos, desentendimentos familiares e sempre viu o mundo com um brilho de curiosidade antropológica no canto do olho. Ela é também uma das grandes personagens na ilustre carreira de Annette Bening, cujo génio está no modo como traz honestidade emocional a todas as suas interações, assim como um humor delicado que se regista nas margens da sua expressão e torna especifico e abrasivo o que poderia facilmente ser abstrato, demasiado idealizado ou indefinido. Mills, por seu lado, faz algo que quase nenhum cineasta americano se atreve a fazer:  admite a derrota face à cósmica complexidade das suas personagens e recusa-se a tentar resolver as suas complicadas psiques.

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A mesma reticência afeta as outras mulheres do elenco principal. Abbie, interpretada por Greta Gerwig, é uma fotógrafa punk que, quando a narrativa se inicia, combate há anos o cancro do colo do útero. É Abbie que dá a conhecer a Jamie, o filho de Dorothea, o feminismo radical e o prazer da música moderna. Gerwig é soberba no papel, mais impressionante ainda que Bening, mas ambas são ofuscadas pela luminosa Elle Fanning como Julie. A personagem, baseada em inúmeras paixões de juventude do realizador, e a sua relação com Jamie trazem ao filme o raro retrato de uma amizade platónica que é, no entanto, afetada pelas vibrantes hormonas da adolescência. Fanning é exímia na expressão de tais dinâmicas e transcende o guião, tornando a sua aparência inocente numa armadura aguçada e a sexualidade latente da personagem numa expressão de poder sobre o mundo, sobre os que a rodeiam e sobre si mesma.

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As personagens masculinas, incluindo o próprio Jamie, não ficam notoriamente atrás das suas companheiras de cena. Diríamos mesmo que o maior prazer de Mulheres do Século XX é o modo como nos deixa passar tempo com estas pessoas que, no final, amamos, independentemente do seu género. William, interpretado pelo maravilhoso Billy Crudup, é o quinto elemento do elenco principal e um veterano das culturas underground da década anterior. Em tempos, converteu-se em hippie devido a uma amada e, mais tarde, foi rejeitado por ela e pela comunidade devido à sua atitude direta e marcas de inferioridade socioeconómica. Em síntese, William é um artefacto de uma época ultrapassada, uma figura de considerável tragédia que, apesar de tudo, tem uma natureza descontraída que produz alguns dos momentos mais hilariantes do filme. De certo modo, ele encapsula o tom de todo o projeto: divertido e leve, mas sempre marcado por pinceladas de forte melancolia.

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É possível que, lendo este texto até aqui, alguém assuma que esse equilíbrio tonal e tapeçaria conceptual sejam apenas resultado do trabalho dos atores mas a realidade é bem mais complicada. Em termos formais, Mulheres do Século XX é uma construção pessoal e exploração retratual que se assemelha a uma colagem de memórias díspares tornadas num discurso harmonioso. A cenografia e fotografia que tornam a Califórnia do passado num microcosmos da experiência humana, a banda-sonora que une cenas e ideias com incomum ligeireza e o guarda-roupa que individualiza cada figura são todos elementos secundários à montagem, cuja natureza é quase argumentativa na sua articulação de ideias de cena para cena. Isso nunca é mais evidente que na sua execução dos dois mecanismos mais vistosos do guião: as montagens repetitivas que apresentam cada personagem individual e a narração omnipresente e omnisciente.

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Partilhado entre as cinco personagens centrais, esse acompanhamento em voz-off parece acontecer ora no futuro, ora no passado ou presente. Ouvimos, por exemplo, a descrição da morte de Dorothea mas partilhamos a ideologia adolescente de Julie sem sentimentalismo ou perspetiva adulta. Emoldurado num efémero verão, o enredo de Mulheres do Século XX torna-se assim um palácio da memória preso no vale do passado, mas as vidas aí representadas transcendem tais limites e até o nosso próprio entendimento cronológico e interpessoal. Essa barreira ou incapacidade de entendimento, passa da montagem e estrutura textual para as próprias personagens. Nenhum momento exemplifica melhor essa incapacidade que a cena em que Jamie lê à sua mãe It Hurts to Be Alive and Obsolete: The Ageing Woman. As palavras são claramente desconfortáveis para Dorothea que diz não precisar de um livro para se conhecer a si mesma. Orgulho ferido e altivez defensiva vibram da sua figura, mas há algo de triste no diálogo, pois, para Jamie, o texto representa uma tentativa precoce e meio desajeitada de entender a pessoa que é a sua mãe.

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Ao longo de todo o filme, cujo guião foi justamente indicado para o Óscar, Mike Mills volta a esta questão, do entendimento que um ser humano tem de si mesmo e do outro. Acima, falámos de como nem Annette  Bening nem o realizador se atrevem a tentar resolver as contradições da sua personagem, mas falta sublinhar que nessa reticência, mais do que virtuosismo intelectual, está implícita uma celebração humanista. Há algo maravilhosamente imprevisível na vida humana, nos seus complicados percursos através da história, do tempo, na sua criação de personalidades estranhas e multifacetadas, mas é precisamente nessa grandiosidade impossível de assimilar que se encontra a sua glória. Segundo Mills e o seu filme, tal como Jamie e Dorothea, nunca vamos conseguir entender por completo outra pessoa, talvez nem nos entendamos a nós mesmos. Na sua conclusão, Mulheres do Século XX lembra-nos de uma verdade intrinsecamente humana e humanista: não conseguir conhecer o outro por completo não implica infelicidade ou solidão pois isso é apenas um reflexo da complexidade cósmica, quase mágica, que é ser-se humano.

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O MELHOR: As cenas de dança, especialmente um momento mágico em que Dorothea e William se movem ao som dos Talking Heads, num ato de camaradagem afetuosa e uma tentativa de entender as gerações mais novas cujos gostos são para eles, nebulosos mistérios.

O PIOR: A inquieta sugestão que Mike Mills nunca expandirá o seu cinema para além dos limites da sua própria vida e específicas experiências familiares.



Título Original:
 20th Century Women
Realizador: Mike Mills
Elenco:
 Annette Bening, Lucas Jade Zumann, Greta Gerwig, Elle Fanning, Billy Crudup

NOS | Drama, Comédia | 2016 | 119 min

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One thought on “Mulheres do Século XX, em análise

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  • É impossível não se deixar levar pelo ritmo da historia, a fotografia é impecável, ao igual que a edição. Considero que consegue o seu objetivo de nos informar e inclusive nos faz pensar sobre o tema. Este filme é um dos melhores do gênero de drama que estreou o ano passado. Desde que vi o elenco imaginei que seria uma grande produção, já que tem a participação de atores muito reconhecidos de Hollywood. Sempre fui fã do trabalho de Mike Mills e seus filmes de arte. Adorei as criticas do filme, obrigado por compartilhar.

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