Queer Lisboa ’19 | My War Hero Uncle, em análise
“My War Hero Uncle” é um comovente documentário sobre a família do cineasta israelita Shaked Goren. O filme está em competição no Queer Lisboa 23.
Com uns parcos 55 minutos de duração, “My War Hero Uncle” é uma das longas-metragens mais breves em toda a competição do Queer Lisboa. A falta de uma duração inflacionada não significa, contudo, que esta obra de Shaked Goren peque por qualquer falta de ambição ou complexidade. Muito pelo contrário, “My War Hero Uncle” é uma lacerante exploração de História familiar que mina uma grande variedade de linhas temáticas. No final, o filme até respeita o espectador o suficiente para o deixar fazer as suas próprias conclusões ao invés de lhe oferecer uma resolução inorgânica.
Este documentário israelita parte de uma premissa de investigação do passado familiar. O realizador cresceu com a história do seu tio, um jovem herói de guerra que morreu no campo de batalha em 1967, na Guerra dos Seis Dias. Contudo, quando ele tenta reclamar os benefícios a que a sua avó tem direito como mãe de um soldado caído em serviço militar, Shaked é confrontado com um mistério. Parece que o tio não terá morrido como um herói. Aliás, depois de explorar documentação oficial, ele descobre que o seu antepassado ter-se-á suicidado.
No seguimento desta descoberta inicial, leva-se a cabo uma investigação que leva Shaked Goren a atravessar o Atlântico em busca de respostas, sendo que mais mistérios e mentiras começam a aparecer sempre que ele obtém alguma resposta. Com isso dito, “My War Hero Uncle” não é tanto um documentário de investigação como é um retrato de dinâmicas e de História familiar. Em algumas passagens, o espectador quase se sente como um voyeur, tal é a qualidade cândida e franca com que o cineasta nos expõe à sua família e seus dilemas pessoais.
A mãe de Shaked Goren passou toda a vida sob a ilusão que o irmão tinha morrido a lutar por Israel, mas agora apercebe-se que tudo isso era mentira. O realizador filma esta mulher a assimilar tais revelações, a chorar e a desviar os olhos da presença invasiva da câmara. Não fosse o filme uma clara máquina de expiação e proto terapia, “My War Hero Uncle” facilmente poderia ser descartado como um exercício amoral, indevido e demasiado invasivo. No entanto, depois de tantas gerações a carregarem consigo mentiras e ilusões, expor tudo em cinema parece um gesto quase purificador.
Face a esta descrição, seria fácil questionar a presença de “My War Hero Uncle” no Queer Lisboa. No entanto, há que ter em atenção que Shaked Goren é assumidamente gay e o tio sempre foi uma presença meio mítica na sua vida. As cartas que o soldado enviou à família estão cheias de descrições de ansiedade social e divagações filosóficas, estão repletas das angústias de um homem sensível que sente não pertencer ao mundo em que se insere. Quando crescia, Shaked ter-se-á reconhecido em tais palavras e encontrado nelas um raio de esperança que o encaminhou na direção da aceitação própria.
De facto, as semelhanças entre tio e sobrinho não se ficam por aí. Shaked é a cara chapada do tio soldado e muitos são aqueles que mencionam essa mesma parecença física. Para os antigos colegas do militar, ver o realizador é quase como ver uma assombração. No caso do homem cuja arma foi usada no suicídio, o encontro com este sósia é particularmente chocante. De facto, tanta emoção este homem mostra que uma dúvida começa a crescer na nossa mente. Será que a sensibilidade e a cara são as únicas coisas que militar e realizador partilham?
Tantas das descrições feitas sobre o tio de Shaked parecem eufemismos que têm sido usados há décadas para descrever homens homossexuais. A própria mãe do soldado fá-lo várias vezes, talvez sem se aperceber, o que leva o espectador a começar a ter grandes questões em relação a esta mentira com mais de cinquenta anos. Por que razão é que ele se suicidou? Por que razão isso foi escondido? Por que razão se contaram tantas e tamanhas mentiras? Como já dissemos, Goren não nos oferece respostas, apenas nos sugere potenciais racionalizações desse legado familiar.
Nos seus últimos momentos, “My War Hero Uncle” vira-se para um dilema moral muito grande. Deveria o realizador contar à avó que o seu filho não morreu como um herói de guerra? Deveria ele contar-lhe que o seu adorado filho se matou e que o marido dela orquestrou um encobrimento da verdade? A relação entre a idosa e o cineasta é muito próxima e a observação da sua dinâmica dá muito humor e vitalidade ao filme, especialmente quando ela lhe exige que traga uma namorada a casa. Tanto isso se regista que, quando essa paz é posta em risco pela verdade, o espectador quase sustém a respiração com o suspense. No final, há mesmo que aplaudir um cineasta que consegue construir tal odisseia emocional com somente 55 minutos.
My War Hero Uncle, em análise
Movie title: Elifelet
Date published: 22 de September de 2019
Director(s): Shaked Goren
Genre: Documentário, 2018, 55 min
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO:
“My War Hero Uncle” é uma miniatura de História familiar a ser desenterrada e dissecada pelo olho curioso de um cineasta. Trata-se também de um poderoso retrato de uma família e do peso que mentiras podem ter ao longo de gerações.
O MELHOR: As cenas partilhadas entre o realizador e a sua avó.
O PIOR: A brevidade do filme é muito admirável, mas também lhe confere a aparência de pouca importância ou errónea leveza.
CA