10 musicais para ver antes de La La Land | New York, New York

New York, New York é possivelmente o filme mais subapreciado na carreira luminosa de Martin Scorsese apesar da sua natureza ambiciosa, ousada e experimental.

 


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Em toda a filmografia de Martin Scorsese é difícil encontrar um filme mais consistentemente odiado tanto por audiências como pela crítica que New York, New York, o seu único musical. Desde a sua estreia, que o filme tem sido apontado com uma confusão de incoerências por pessoas que aparentemente não perceberam que essas mesmas incoerências eram o propósito deste filme de precisas subversões. Para quem, no entanto, se apercebe dessa dinâmica a reação ao filme costuma ser igualmente negativa, com vários críticos contemporâneos a verem nele um aborrecido exercício sem valor. Quer tenha sido algo intencional ou acidental, uma coisa é certa – nas reações que Scorsese provocou, o cineasta americano acabou por conjurar uma perfeita extensão da sua obra-prima musical e suas cortantes ideias sobre cinema.

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Com esse parágrafo introdutório não deverá ser difícil deduzir que este texto consiste numa defesa do filme e não em mais uma enfadonha listagem dos seus pressupostos defeitos. Como tal, é melhor começarmos por apresentar o esqueleto do seu enredo que é uma espécie de reaproveitamento cínico da história de A Star is Born. Em New York, New York acompanhamos a turbulenta história de amor entre Francine, uma cantora cheia de ambições profissionais, e Jimmy, um saxofonista egotista e igualmente ambicioso. Ao longo do filme, vemos o desenvolver do seu relacionamento, pessoal e artístico, assim como as suas divergências, separações e violentos conflitos, à medida que testemunhamos a concretização dos seus sonhos profissionais – ela torna-se uma cantora e atriz de sucesso, enquanto ele ganha renome no mundo do jazz e abre um clube (os paralelos com La La Land são gritantes!).

A história, temos de admitir, pouco tem de original ou particularmente inspirador, mas é na sua execução que se esconde o génio de Scorsese que nunca foi tão ousado, vanguardista ou experimental como neste projeto. Em primeiro lugar, temos o casting de Liza Minnelli e Robert de Niro nos papéis principais, um par de escolhas que sugere logo uma desconstrução concetual como o cinema mainstream americano raramente viu. É que, em 1977, não haveriam duas pessoas que mais perfeitamente englobassem ideias antagónicas do que era Hollywood e, por consequência, o cinema americano. Ela é a filha de Judy Garland e Vincente Minnelli, a princesa na casa real do musical clássico com um estilo interpretativo ainda dependente dos códigos teatrais de outra era. Ele, por contrário, é o protagonista de Taxi Driver e O Padrinho Parte 2, um ícone do movimento do New Hollywood Cinema, que, influenciado pelas vanguardas europeias, propunha uma produção cinematográfica apoiada em noções urbanas de realismo e seriedade artística. Escusado será dizer que o seu trabalho conjunto é intencionalmente incoerente, criando uma cruel tradução meta textual da relação tóxica no centro da narrativa.

No seguimento deste jogo conflituoso entre a Hollywood velha e nova, toda a construção formal de New York New York é um turbilhão de espaços reais filmados de modo realista e uma série de sequências, ocasionais cenários e elementos que remetem para a falsidade do cinema escapista das décadas anteriores. Em essência, Scorsese criou aqui um tratado cinematográfico em forma de filme narrativo, onde o artifício dos musicais clássicos é contraposto ao realismo dos estilos modernos, revelando a sua inerente desconexão da realidade. O efeito ainda mais interessante é o modo como a dissecação de códigos não se resume ao classicismo personificado por Liza Minnelli mas também ao modernismo de De Niro. Afinal, Scorsese acaba por mostrar a verdade incontornável que o pressuposto realismo de filmes como Taxi Driver é algo tão artificialmente construído como os musicais de outrora.

Para além de tudo isso, New York, New York é um dos poucos filmes de Martin Scorsese com uma protagonista feminina e essa perspetiva é bastante pertinente, ajudando o realizador a olhar criticamente para a figura de Jimmy. Nele está também personificado o tipo de venenosa masculinidade baseada em violência que Scorsese passou a maior parte da sua carreira a retratar. Não admira que os fãs de Scorsese detestem ou se sintam carrancudamente indiferentes em relação a este musical. Afinal, não é todos os dias que um realizador tão abertamente critica o modo como o seu público e fãs apreciam o seu trabalho. Podemos, é evidente, dar o exemplo muito europeu de Michael Haneke. O que separa o cruel Haneke do realizador de New York, New York, é o modo como, apesar da afiada precisão da sua análise e desconstrução, Scorsese nunca esconde o amor pelas personagens e pelos tipos de cinema em colisão no projeto.

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No final, New York, New York é um filme de imensa complexidade concetual que quase exige ao espetador um conhecimento histórico do cinema americano desde os anos 30 aos anos 70. Isso torna-o num visionamento difícil, sem dúvida, e a natureza tóxica do romance central em nada ajuda a tornar o filme mais fácil de digerir para o espetador, mas, se conseguirmos superar tudo isso, este musical é uma fonte de inesgotáveis prazeres. Desde a sua riqueza ideológica e intelectual, passando pelas prestações primorosas dos dois atores principais e a banda-sonora rica em showtunes gloriosos e muito jazz, até à rigorosa formalidade, New York, New York é um trabalho inequivocamente assinado por um verdadeiro mestre da sétima arte. Como nota final, deixamos aqui o vídeo do único elemento do filme que parece agradar a gregos e troianos, o número titular em que Liza Minnelli parece a reencarnação da sua mãe e traz uma dimensão de grandiosidade transcendente ao climático final da narrativa.

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O título de New York, New York refere-se tanto ao espaço geográfico como às duas realidades em oposição, a Nova Iorque sonhada dos musicais e a visão grotesca do ambiente urbano nos dramas dos anos 70. Nesse sentido, é quase uma celebração tão grande de uma cidade como La La Land e o filme da página seguinte que, por acaso, também é um infame flop.



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