"A Noite Sempre Chega" | © Netflix

A Noite Sempre Chega – Análise

Com estreia exclusiva na Netflix, “A Noite Sempre Chega” ou “Night Always Comes” é um drama angustiante em que Vanessa Kirby faz tudo para proteger a sua família. Realizado por Benjamin Caron, o filme conta ainda com Jennifer Jason Leigh, Zack Gottsagen, Stephan James, Randall Park, Julia Fox e Eli Roth no elenco.

Uma loira de olhos intensos vai pela noite dentro em busca de salvação. A câmara segue-a, fiel e, por vezes, frenética, sempre atenta ao degredo a que a sua heroína se predispõe na desventura. Emoções são fortes, à flor da pele, e a precariedade socioeconómica das personagens só dificulta a situação. Nesta mulher vive toda uma geração, quiçá um país também, uma América que vive nas sombras, mas desespera a céu aberto. O trabalho da atriz não esconde nada, somente salienta, sublinha e sublima, levando ao limiar do excesso. Ela é como um vulcão humano e a sua aflição fere-nos o âmago, seduz a câmara, apaixona o cinema e torna-o vassalo perante a sua magnificência.

Lê Também:
Pedro Pascal e Vanessa Kirby enfrentam o seu maior desafio em Fantastic Four: First Steps

Podia estar a descrever qualquer uma das colaborações entre John Cassavetes e sua musa, Gena Rowlands. Mas não estou. Ao invés, refiro-me a Vanessa Kirby em “A Noite Sempre Chega” de Benjamin Caron. É certo que a comparação com um mestre do cinema tão grande como o realizador de “Uma Mulher Sob Influência” sabe a blasfémia, mas não é absurda. Como muitos cineastas americanos que trabalham em jeito independente, Caron deve muito a Cassavetes, quer seja por via da referência direta ou indireta. Dito isso, talvez deva ainda mais aos irmãos Safdie, cujo “Diamante Bruto” me parece uma fonte de inspiração declarada. Até partilham Julia Fox em papéis secundários!

Uma odisseia noturna de desgraça e miséria.

a noite sempre chega night always comes critica
© Netflix

Baseado no romance homónimo de Willy Vlautin, “A Noite Sempre Chega” segue Lynette, uma mulher em Portland, no noroeste americano, onde o ar é pesado e húmido, as vidas tristes e a taxa de suicídio bate recordes. Seu fado é definido pela funesta pobreza em que sempre viveu, perpetuamente precária e presa a memórias adocicadas da juventude. Ou, pelo menos, assim pensa Doreen, sua mãe, com quem Lynette ainda vive juntamente com o irmão, Kenny, que sofre de Síndrome de Down. Para a matriarca, a casa onde os filhos cresceram não passa de um fardo, prisão doméstica autêntica. Para Lynette, é tudo o que tem.

Por isso, ela tenta tudo para preservar o domicílio e manter algum semblante de normalidade. Quando a conhecemos, esta preocupação chega ao auge, sendo que o proprietário da residência se disponibilizou para a vender a Doreen. A alternativa será o despejo. A falta de fundos e crédito nulo levam a que Lynette dependa da mãe para esta compra, só que esta troca-lhe as voltas ao comprar um Mazda e faltar à reunião com o banco para um empréstimo. A única solução possível envolverá arranjar 25.000 dólares até ao dia seguinte, disparando a protagonista numas 24 horas desesperadas, um dia cansativo depressa transformado em noite infernal.


Desgraças precipitam-se sobre mais infortúnios à medida que Lynette parece contactar toda a gente que conhece em Portland na tentativa de pedir emprestada a quantia necessária. Primeiro surge um cliente leal em diálogos que revelam como ela tem recorrido à prostituição para sustentar-se a ela, à mãe e ao irmão. No segundo destes encontros que dão forma ao filme, até a vemos confrontar uma amiga e exigir que pague dívida antiga. Ela só quer aquilo que já é seu, mas a conversa acaba num impasse. Enlouquecida, Lynette decide arrombar a caixa-forte da companheira doutros tempos, acabando por se precipitar num submundo de crime e tráfico que levam a noite de mal a pior.

Chega-se a um ponto onde a miséria se torna cómica no entendimento mais ignóbil da expressão. Porque Caron não tem ponta de ironia na sua linguagem audiovisual, encarando todo o drama com seriedade absoluta. O degredo assim se apresenta naquela forma fácil de exigir a lágrima ao espectador, confundindo pena com empatia, reduzindo as personagens ao conglomerado das suas mágoas. Trata-se de um filme sobre os marginalizados da economia americana que os contempla como alguém contempla os animais no jardim zoológico. A distância sente-se na pele, a desumanização reina e não há boas intenções suficientes para contrariar tais verdades.

Pub

O êxtase de Vanessa Kirby no cinema.

a noite sempre chega night always comes critica
© Netflix

Porventura, uma abordagem mais grosseira tivesse recuperado a autenticidade que a história exige. Se anularmos a polidez digital da fotografia, a beleza do grande plano de estrela de cinema, a montagem derivada do thriller vulgar, talvez o realismo suplantasse a falsidade. Talvez assim, “A Noite Sempre Chega” se equiparasse à melhor adaptação de Vlautin já feita em cinema – “O Meu Amigo Pete” realizado por Andrew Haigh. Enfim, são tudo conjeturas que em nada alteram a mediocridade geral da obra. É claro que não deveria dar ideias de incompetência geral ou de um filme sem qualidades evidentes. Nem tudo em cena merece reprovação.

A cenografia de Ryan Warren Smith faz um bom delineamento das desigualdades em sociedade injusta, evitando o cliché e a paródia acidental em que o argumento por vezes cai. A montagem de Yan Miles tem os seus pontos altos, especialmente quando a história chega aos seus últimos atos e o desespero de Lynette causa o total pandemónio, cheio de gritaria e carne mortificada por vidro partido. Esse trabalho faz muito para moldar as caracterizações febris, como que num jogo cíclico de colisão entre as reações desorientadas da heroína e a procissão de caricaturas vis com que ela se depara. Como se deve perceber pela descrição, nada disto funcionaria sem o elenco.

Lê Também:
Curiosidades sobre os atores de Fantastic Four: First Steps

Se estivesse de pior humor, diria mesmo que a única razão para ver “A Noite Sempre Chega” é Vanessa Kirby no papel principal. Como Lynette, ela vai buscar a mesma intensidade com que abençoou “Pieces of a Woman,” e compensa a displicência audiovisual do realizador com prestação crua e dura. Ela é ainda mais impressionante naqueles momentos de carinho, revelando grande química com Zack Gottsagen no papel do seu irmão. Também Jennifer Jason Leigh provoca grandeza em Kirby, emoldurando o filme entre duas conversas penosas de mãe e filha. Por fim, tenho o inesperado prazer de aplaudir Eli Roth num papel tão minúsculo como memorável. Quem diria que esse enfant terrible do terror americano tinha habilidade para isto?

Pub

A Noite Sempre Chega

Conclusão:

Pub

  • Em sugestão de Cassavetes e muita derivação dos Safdie, “A Noite Sempre Chega” propõe uma história cheia de clichés e convulsões miserabilistas. Trata-se de um retrato de pobreza americana feita em jeito de turista económico, apreciando a vida dos desafortunados num exercício de pena, sempre a empilhar mais catástrofes nas costas de uma protagonista que já começa o filme à beira de um ataque de nervos.
  • Uma outra adaptação poderia certamente trazer ao de cima as qualidades patentes no livro de Willy Vlautin, mas este argumento não consegue tal feito. Pelo contrário banaliza as teses sociais e reduz as personagens a recipientes ou distribuidores de sofrimento sem nenhum meio termo. Uma coisa é certa – Benjamin Caron foi o realizador errado para esta história.
  • Contudo, o elenco é muito bom e alguns detalhes de cenário e montagem também merecem louvor. Vanessa Kirby é a qualidade mais evidente de todas, entregando-se a mais um papel com ferocidade para dar e vender. Longe de capitular perante as problemáticas do texto, ela renega a pena própria com boa dose de raiva. A sua Lynette não pede a nossa pena enquanto espectadores. Ao invés disso, demanda respeito e a dignidade que o mundo lhe está sempre a negar.
Overall
5/10
5/10
Sending
User Review
0 (0 votes)

About The Author


Leave a Reply