Russell Crowe está magnífico no papel de Goering. ©Nos Audiovisuias/Divulgação

“Nuremberga” — Análise

Um duelo entre um psiquiatra seduzido pelo abismo e um genocida com excesso de charme transforma “Nuremberga” num filme tão elegante que quase esquece o horror que pretende julgar. A História merecia mais sujidade e menos verniz. A grande estreia da semana de um filme ‘à Hollywood’.

“Nuremberga”, de James Vanderbilt, é um daqueles filmes que passa um pano de microfibra na História e deixa tudo a brilhar, — tipo o algodão não engana — enquanto nos podia antes devolver-nos o seu peso moral. O que deveria ser um mergulho na escuridão do século XX acaba por transformar-se numa espécie de thriller higienizado, cheio de poses, luz suave e egos em circuito fechado. Dois grandes actores como Russell Crowe e Rami Malek fazem o que podem dentro deste teatro polido e asséptico. E ainda um terceiro Michael Shannon, como Robert H. Jackson, o procurador-chefe dos EUA. Porém, o filme insiste em olhar para o mal — e para as suas origens não como o fez a filósofa Hanna Arendt (1906-1975), na sua obra incontornável — com se fosse um objeto de museu: iluminado, enquadrado, seguro. E é precisamente aí que falha, nesse inexplicável conforto.

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Rami Malek
O psicólogo Douglas Kelley, interpretado por Malek. ©Nos Audiovisuais/Divulgação

O Psiquiatra Que Queria Ler a Alma

Em “Nuremberga” Douglas Kelley, é interpretado por Malek com aquele olhar clínico-ansioso que ele traz desde “Mr. Robot”, surge como o doutor iluminado encarregado de vigiar os nazis. Não tanto para os curar, mas para garantir que não morrem antes de serem julgados. A ironia é deliciosa: a história de um homem Kelley obcecado pela origem do mal que parece não perceber que a sua própria curiosidade roça o voyeurismo. Vanderbilt — escreveu o argumento do monumental “Zodiac” (2007), de David Fincher e também os dois “O Espetacular Homem-Aranha 1 e 2” — filma-o quase como um ilusionista moral, convencido de que um simples teste de Rorschach pode explicar os genocídios nazis e o holocausto. É bonito. Às vezes até parece demasiado ingénuo.

VÊ TRAILER DE “NUREMBERGA”

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Göring: O Demónio Com Charme de Palco

Do outro lado da mesa, Crowe interpreta Göring com um misto inquietante de pavão e predador. O ator ocupa o ecrã como quem ocupa um trono; cada frase sua soa a performance ensaiada, cada olhar é uma armadilha para o público e para Kelley. Há nele uma vaidade venenosa, um humor de quem sabe que já perdeu, mas insiste em encenar a vitória. Crowe é, sem rodeios, a razão pela qual este filme existe e talvez o único motivo para se ver este filme até ao fim. Mas é também o ponto fraco moral da obra: o filme deixa-se seduzir pelo monstro. A presença como secundário de Michael Shannon como Robert H. Jackson acrescenta rigor e densidade histórica, mas o filme insiste na dramaturgia dos egos, como se o Julgamento de Nuremberga tivesse sido um concurso de inteligência e não o maior acerto de contas moral do século.

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Um Tribunal que Parecia um Set de Estrelas

O grande problema de “Nuremberga” está na criação do ambiente. A sala de audiências deveria oprimir; deveria pesar; deveria cheirar a História e ao famoso (pelas piores razões, óbvio) julgamento universal. Em vez disso, Vanderbilt oferece-nos um tribunal tão bem iluminado que quase esperamos que alguém peça um chá de camomila, entre depoimentos. Há um lado estetizado, quase estilo Aaron Sorkin encontra “The Crown”, transformando a gravidade do momento numa sucessão de diálogos rápidos e cortantes, bastante bons para a orelha, mas perigosamente leves para o estômago. O resultado? O mal fica demasiado fotogénico. E isso é sempre uma péssima ideia, sobretudo quando mexe com o nazismo.

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Nuremberga
Um filme que apenas cheira a História. ©Nos Audiovisuais/Divulgação

Quando a Realidade Entra, o filme Colapsa

A reviravolta em “Nuremberga” acontece quando Vanderbilt insere imagens reais dos campos de concentração. De repente, o verniz racha. Os corpos, os silêncios, os olhos mortos, tudo aquilo que o filme andava a evitar entra pela porta grande e arrasa a encenação. É o único momento em que sentimos verdadeiramente o que estava em jogo em 1945. Mas, ao mesmo tempo, expõe a fraqueza de tudo o resto: quando a História aparece, o cinema de Vanderbilt desaparece.

O Espetáculo da Culpa e o Nariz Levantado do Bem

Há porém uma boa ideia no centro de “Nuremberga”: a possibilidade de que Kelley e Göring partilhem mais do que gostariam: a vaidade da inteligência, o fascínio pela própria importância, a obsessão em serem lembrados. Infelizmente, o filme nunca a mastiga. Prefere sugeri-la, pousá-la e seguir viagem para mais uma troca de farpas espirituosas entre o monstro e o médico. É uma pena. Seria uma reflexão ainda mais poderosa sobre como o mal não se apresenta como caricatura, mas como espelho.

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Nuremberga
Crowe é, sem rodeios, a razão pela qual este filme existe. ©Nos Audiovisuais/Divulgação

O Passado Continua a Provocar Arrepios

Há um momento em que Göring, com o seu sorriso venenoso, afirma: “Hitler fez-nos sentir alemães novamente.” A frase é um murro no estômago, não pelo passado que invoca, mas obviamente pelo eco que encontra no presente, sobretudo na Europa. Vanderbilt quer sublinhar esse espelho histórico em “Nuremberga”, mas fá-lo com demasiada prudência, com medo de ferir alguém. A História, porém, não pede suavidade, nem paninhos quentes. Pede clareza e verdade.

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Nuremberga — Análise
  • José Vieira Mendes - 60

Conclusão:

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“Nuremberga”, de James Vanderbilt é um filme bem interpretado, bem produzido e, justamente por isso, perigosamente cómodo. Condena o mal, mas fá-lo com luvas de seda. Mostra o horror, mas certifica-se de que ninguém se sente verdadeiramente incomodado. É um filme que quer julgar, mas não quer sujar as mãos. E, quando falamos do maior julgamento da humanidade, isso é simplesmente insuficiente. O mal não devia ser tão fácil de olhar. O horror não devia ser tão elegante. E a História não devia ser tão domesticada.

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Pros

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O melhor: Russell Crowe, absolutamente magnético, um Göring entre o bufão e o diabo.

Cons

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O pior: A obsessão de Vanderbilt com a forma transforma o julgamento do século num drama de domingo à tarde.


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