"O Passageiro Oculto" | © Cinemundo

O Passageiro Oculto, em análise

Chloë Grace Moretz é uma mulher com muitos segredos a bordo de um avião de guerra em “O Passageiro Oculto”. Extravasando o cinema da Segunda Guerra Mundial com uma proposta louca e lunática, o novo filme da realizadora Roseanne Liang é uma deliciosa surpresa, cheia de divertimento inesperado.

Antes de iniciar a sua narrativa principal, “O Passageiro Oculto” delicia o espetador com uma paródia das curtas animadas pelas quais o exército Americano educava os soldados nos tempos da Segunda Guerra Mundial. Através desse cartoon jocoso, ouvimos falar do mito dos gremlins, esses demónios que destroem aviões no ar e provocam acidentes calamitosos. É claro que, como a animação bem reforça, tais monstrinhos são meramente um eufemismo, a desculpa de um aviador distraído quando comete algum erro imperdoável. Sendo este um filme de terror a resvalar na ação bombástica, bem podem apostar que esse ser fantástico se vai revelar como uma realidade antes de os créditos finais rolarem.

Não que o primeiro ato da história nos aponte na direção do sobrenatural. De facto, nestas primeiras cenas a seguir ao prólogo, Roseanne Liang apresenta-nos um cinema de terror onde a angústia devém dos males comuns ao invés de algum pesadelo impossível. Especificamente, o monstro que domina a cena é o sexismo, machismos venenosos aqui filtrados pelo discurso de época dos anos 40. A vítima do horror é Maude Garrett, uma mulher piloto que, em noite de tempestade, aborda um avião militar prestes a sobrevoar o Pacífico. Consigo leva uma carga misteriosa, uma caixa que ninguém pode abrir, com conteúdos que mais ninguém pode conhecer.

o passageiro oculto critica
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A paranoia instala-se, estimulada pelo ressentimento de uma tripulação de homens carrancudos com a intrusão feminina. Eles veem-na como um risco, como um omino de má sorte, como uma turista que lhes vai dificultar o trabalho e tem segredos a mais para o gosto de todos os envolvidos. Num gesto de praxe, a menina Garrett é forçada a separar-se da caixa curiosa e enfiada na cabine de disparos, pendente debaixo do corpo principal do avião. É um espaço claustrofóbico, ligado ao resto da máquina por rádios incertos que, às vezes, se ligam sem ninguém saber. É assim que a nossa heroína ouve os insultos nojentos dos seus aliados, comentários lascivos que dão asco.

Antes de tudo dar para o torto, de os Japoneses dispararem sobre o avião e um monstro sinistro o desmontar em pleno voo, já Liang compõe uma magnífica sinfonia de tensão acumulada. A premissa do filme é de doidos, sem dúvida, mas ainda mais tresloucada é a sua montanha-russa tonal. Apoiada na banda-sonora rica em sintetizadores de Mahuia Bridgman-Cooper, a realizadora constrói um objeto de máximo anacronismo. O som remete para os anos 80, o momento histórico da cena é anos 40. A perspetiva feminista, contudo, até mesmo a linguagem com que é expressa, só sabe mesmo a século XXI puro e duro.

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Sem tentar conjugar estes modos diferentes em harmonia, a cineasta leva cada um deles aos extremos e deriva uma excitação visceral dessa discórdia. Muito ajuda a astúcia no posicionamento da câmara e no discernimento de variações rítmicas. Esta secção da fita passa-se maioritariamente na companhia de Garrett, suspensa naquele compartimento minúsculo, pelo que a flexibilidade formalista é essencial para o dinamismo. O jogo de som merece aplausos, mas a fotografia de Kit Fraser é brilhante também. Na cena principal existe uma continuidade luminosa e cromática, a vagarosa transição da noite para o dia experienciada lá bem alto nas nuvens.

Só que existe ainda um paradigma sonhador, imagens mentais da heroína que vibram em cores saturadas, alucinações em Technicolor digital. A fuga deliberada do naturalismo na direção de um registo mais estilizado faz-se sentir até no panorama performativo. Enquanto os homens são reduzidos a caricaturas vocais, cabe a Chloë Grace Moretz delinear a personagem através de emoções fortes e uma pátina de mentiras palimpsésticas. Ela raramente diz toda a verdade, está sempre a esconder segredos e imitar sotaques. Existe, portanto, uma amálgama de artifício inerente ao drama, uma vertente que a atriz aproveita para intensificar os nervos da audiência.

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Dito isto, nem ela nem a realizadora descuram no que se refere à materialidade da aventura. O esforço físico é bem denotado, assim como o tormento dos ossos quebrados, dos tiros que vibram na couraça de metal, nos gritos que ensurdecem. Quando o misterioso pacote da piloto é posto em risco, Moretz entra num espetáculo de acrobacias autêntico, trepando pelo exterior do avião. É certo que os efeitos digitais não convencem muito, mas a expressividade de todo o engenho cinematográfico compensa. Além disso, as angústias patentes nos olhos destemidos da atriz asseguram-nos da realidade da situação. Nesta fantasia de doidos, o custo humano é sentido, é forte e faz doer.

Mais não revelamos, pois “O Passageiro Oculto” é daqueles filmes que deve ser experienciado sem expetativas certas. As suas surpresas são assim mais doces, suas reviravoltas mais absurdas, seus choques mais capazes de nos porem a rir, chorar e bater palmas ao mesmo tempo. Na verdade, o guião de Max Landis é bem pateta, mas a execução cinematográfica compensa a estupidez textual. Isso pode querer dizer que não estamos perante grande cinema enquanto arte erudita, mas também significa que temos aqui uma preciosidade de entretenimento sem vergonha. Fugindo à mediocridade através do engenho formalista, Liang e companhia criaram uma injeção de adrenalina em forma de filme.

O Passageiro Oculto, em análise
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Movie title: Shadow in the Cloud

Date published: 9 de November de 2021

Director(s): Roseanne Liang

Actor(s): Chloë Grace Moretz, Nick Robinson, Beulah Koale, Taylor John Smith, Callan Mulvey, Benedict Wall, Byron Coll, Joe Witkowski

Genre: Ação, Terror, Guerra, 2020, 83 min

  • Cláudio Alves - 75
  • Manuel São Bento - 65
70

CONCLUSÃO:

“O Passageiro Oculto” pode dar vontade de rir em algumas passagens mais patetas, mas nunca aborrece. Sem dúvida, o filme ameaça cair no absurdo sem remédio, só que consegue sempre levantar-se graças às engenhocas de uma grande cineasta. A obra final surpreende pela positiva, oferecendo uma aventura feroz sobre as águas do Pacífico.

O MELHOR: A estrutura perfeita da fita, desenrolando trama a passo veloz e dando prioridade máxima às emoções fortes, quer elas sejam a paranoia de uma mulher encurralada ou a aflição de uma queda livre.

O PIOR: O texto é pateta e inconsequente, sua premissa digna de um projeto de série B. Louvada seja a Roseanne Liang que descobriu como revitalizar as invenções de Max Landis e as elevar acima da mediocridade.

CA

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