"Os Fantasmas" | © Nitrato Filmes

Os Fantasmas, a Crítica | A Guerra na Síria assombra o novo thriller de Jonathan Millet

Também conhecido como “Ghost Trail” e “Les Fantômes” no original francês, “Os Fantasmas” é um thriller doloroso sobre um homem atormentado pelo passado em busca de vingança. Jonathan Millet realiza, com Adam Bessa e Tawfeek Barhom nos papéis principais.

Tudo começa na escuridão, um mistério sepulcral em que todo o ruído ressoa como um trovão. Estamos nas traseiras de uma carrinha, na companhia de Sírios em fuga do seu governo, rumo à Europa através da Turquia. Apercebemo-nos disso quando as sombras são obliteradas, as portas abrem-se e o sol cega, tão intensa é a sua luz. Diante destes homens desesperados estende-se o deserto, quente e pronto a ceifar as muitas vidas de quem vai morrer na travessia. Uma dessas pobres almas cai morto mesmo antes de a carrinha os abandonar. Por momentos, a câmara ponderou-o como um potencial protagonista, mas o seu triste fado prova erradas essas suposições.

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Ao invés disso, “Os Fantasmas” centrar-se-á em torno de Hamid, outro daqueles condenados a caminhar na areia quente, desidratado e em agonia, em busca de uma vida melhor. Ou, como é o caso, de uma oportunidade de sobreviver, pois isso tornou-se impossível na Síria de Bashar al-Assad. Não acompanhamos a sua travessia, cortando para dois anos depois, quando o refugiado reconstruiu a vida em terras europeias. Deparamo-nos com ele a trabalhar na construção civil, mais um entre muitos imigrantes que são diariamente sujeitos a abusos laborais às mãos de sistemas sedentos por mão-de-obra barata.

A tensão é de cortar à faca, quase sufocante.

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© Nitrato Filmes

Novamente, o realizador Jonathan Millet vem brincar com as expetativas do espetador. Tal como podíamos pensar que aquele desgraçado no deserto era o nosso protagonista antes de nos focarmos em Hamid, também se poderia assumir que “Os Fantasmas” seria um exercício em realismo social à la Dardenne. Só que esta vivência comum não passa de uma fachada, forma de desviar as atenções e permitir a este homem tornar-se um com as sombras. Acontece que, na transição entre o prólogo e a ação principal, o anti-herói desta história se tornou numa espécie de agente secreto saído diretamente de um daqueles romances que Le Carré assinou durante a Guerra Fria.

Juntamente com outros sobreviventes Sírios e alguns aliados, Hamid vai à caça dos torturadores e criminosos de guerra que fugiram à justiça e agora tentam forjar vidas normais entre a diáspora árabe na Europa. Ele está principalmente obcecado com um alvo que apenas conhece através de detalhes limitados, a voz que ouvia quando era atormentado na prisão de Damasco. A missão leva-o a França, onde se insere na comunidade síria local e vagueia pela faculdade, um predador em busca da sua presa, na expetativa que o alvo seja o monstro e não outro qualquer inocente. Millet tudo isto sustenta graças ao trabalho do seu ator principal – Adam Bessa.


Numa prestação que já valeu nomeações para os prémios César, Lumière e da International Cinephile Society, a estrela de “Os Fantasmas” concebe um retrato deliberadamente incompleto. Somos feitos a entender a odisseia pela justiça como um ato corrosivo, um projeto que lentamente corrói a humanidade de quem a ele se dedica, apagando a pessoa por detrás destes propósitos maiores. Não que Hamid já se tenha perdido a si mesmo. Vai nesse caminho, mas ainda há esperança de salvar a alma, tal como a amizade com uma jovem imigrante em Estrasburgo demonstra, ou a sua preocupação com a mãe que ficou retida num campo de refugiados em Beirute.

Entre a câmara e o trabalho do ator, este drama parece reinventar-se ao longo da narrativa, desde o thriller com gosto pela polémica e intriga internacional até um estudo de personagem mais ambíguo. Dependendo da cena, pressentimos a presença de Hamid como algo perigoso ou sentimos temor pela sua segurança, ora pânico pelo vazio que por vezes brilha no seu olhar ou desassossego perante o vislumbre de vulnerabilidade. O equilíbrio destas ideias é de uma delicadeza extrema, especialmente num contexto de género cinematográfico onde cada passo dado pelos cineastas implica o risco de cair no cliché.

Quando a esperança se torna num gesto radical.

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© Nitrato Filmes

Mas “Os Fantasmas” jamais tropeça no lugar comum, não havendo limite aos parabéns e aplausos que Millet e Bessa merecem, por isso e outros triunfos. De facto, pode-se dizer da edição precisa de Laurent Sénéchal, da música de Yuksek e das restantes sonoridades que Nicolas Becker e Raphael Sohier conceberam para a fita. Pode-se dizer o mesmo do restante elenco, com especial destaque para Tawfeek Barhom como esse misterioso indivíduo que pode ou não ser o torturador de Hamid. As cenas partilhadas entre os dois estão entre as mais tensas de que há memória, uma aflição em crescendo, sufocando o espetador com cada pausa periclitante, cada silêncio pesado.

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Dito isso, não é o diálogo entre o gato e rato desta caçada que mais surpreende em “Os Fantasmas.” Para o real choque, temos que ponderar o final, uma contradição da trajetória trágica para a qual Hamid parecia destinado. Raro é o conto de vingança que preserva espaço para a presença, especialmente num contexto tão sanguinário como este. Mas Millet e a coargumentista Florence Rochat demonstram mais humanismo que muitos, concedendo uma generosidade incomum ao protagonista. Dão-lhe a oportunidade de escapar aos ditames do modelo narrativo e vislumbrar um futuro em que pode voltar a ser pessoa e não somente um espectro vingativo, um agente da justiça, um fantasma.

Os Fantasmas, a Crítica

Movie title: Les Fantômes

Date published: 27 de May de 2025

Country: França

Duration: 106 min.

Director(s): Jonathan Millet

Actor(s): Adam Bessa, Tawfeek Barhom, Julia Franz Richter, Hala Rajab, Shafiqa El Till, Sylvain Samson, Pascal Cervo, Mudar Ramadan, Faisal Alia, Dorado Jadiba, Fakher Aldeen Fayad

Genre: Drama, Thriller, 2024

  • Cláudio Alves - 8.5/10
    8.5/10

CONCLUSÃO:

“Os Fantasmas” conta uma história mais ou menos típica de espionagem e identidades falsas. Dois aspetos diferem e elevam a obra de outros projetos semelhantes. Primeiro, temos a componente política, sendo esta uma reflexão sobre os horrores da Guerra na Síria e os ecos dessa violência. Depois, há a trajetória narrativa e o modo como circum-navega os clichés típicos destes enredos. Além disso, a execução formal é primorosa, mesmo que convencional, e o trabalho dos atores arrebata, desde o génio de Adam Bessa até aos papéis mais menores.

O MELHOR: Bessa, a generosidade de Millet para com as suas personagens e aquele final inesperado em que as expetativas associadas a este tipo de história se viram de pernas para o ar. Dá vontade de aplaudir de pé e verter uma lágrima ou duas.

O PIOR: Polida e eficaz, a estratégia audiovisual dos cineastas não deixa de ser meio derivativa no contexto do cinema Europeu contemporâneo. Não há aqui nenhuma imagem de cortar a respiração ou algum tableau que persista na memória.

CA

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8.5/10
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