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RUGAS | Entrevista com Patrícia Cairrão e Ricardo Santos

Patrícia Cairrão e Ricardo Santos, os criadores da nova produção da RUGAS Associação Cultural, estiveram à conversa com a MHD.

A RUGAS Associação Cultural prepara-se para levar a palco uma trilogia de autores russos, sendo Daniil Harms a inspiração para a primeira peça que estreia já no próximo dia 27 de agosto. “A viagem de Kolka Pankin e Petka Erchov que não acreditava em nada” é uma homenagem à arte que faz uma ode à liberdade de expressão. Com encenação de Ricardo G. Santos e adaptação da dramaturgia por Patrícia Susana Cairrão, a peça disserta sobre o absurdo e as dificuldades da comunicação.

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Numa altura em que muitos artistas vêm a sua arte cancelada dadas as suas ideologias, crenças ou nacionalidade, “A viagem de Kolka Pankin e Petka Erchov que não acreditava em nada” visa dar voz a todos aqueles que são apagados pelo regime. E a escolha de Daniil Harms não poderia ter sido mais certeira, não tivesse o poeta russo sido obrigado a escrever em revistas infantis para poder continuar a exercer o seu trabalho sem que o regime o perseguisse. A peça estará em cena na Quinta da Ribafria todos os sábados e domingos, às 16:00, até dia 25 de setembro.

TEASER | A VIAGEM DE KOLKA PANKIN E PETKA ERCHOV QUE NÃO ACREDITAVA EM NADA

MHD: Em primeiro lugar, gostava que vocês fizessem um enquadramento desta peça. 

Ricardo Santos: Esta peça partiu de uma necessidade de trabalharmos há um tempo atrás escritores russos que basicamente nunca são lançados ou trabalhados em teatro em Portugal. Ao mesmo tempo, acaba por ser um bocado irónico o facto de hoje a Rússia ter desencadeado uma guerra e haver uma série de autores que nada têm que ver com isto, mas a serem de alguma forma cancelados. Aí optámos pelo Daniil Harms. O seguinte é possivelmente Aleksandr Blok, que é um poeta também desta altura, tal como Mikhail Bulgákov. Optámos por começar com esta, porque tem uma abrangência de públicos, ou seja, tanto dá para crianças como para adultos, depois cada um tira as suas teorias, lições e mensagens.

Então esta peça tem uma coisa que para nós também é fundamental que é a comunicação, que é muito difícil neste espetáculo entre os dois personagens, que são Kolka e Petka. Estes tempos atuais são muito focados na comunicação, mas numa comunicação que se começou a chamar de fake news ou ‘pós verdade’. E o que acontece é que há uma das personagens que está sempre a criar histórias e a inventar coisas e há uma outra que não acredita. Estão sempre nesta espécie de duelo e por isso este é um espetáculo que não tem princípio nem fim. É dividido em sketches, como se fosse um stand-up comedy. Tem um MC (Mestre de Cerimónias) que vai direcionando e dando algumas ordens, fazendo breves comentários. Este é um tipo de espetáculo que pode perfeitamente entrar num café-teatro. 

Patrícia Cairrão: É como se fosse uma parte de um dia retirada da vida destas duas personagens, como se eles comunicassem assim um com o outro, como se a comunicação se fizesse desta forma absurda e cómica. Tudo parece sem sentido, mas acaba por ser uma metáfora como chave de leitura desta atualidade que nós vivemos. O Daniil Harms era um autor de vanguarda russa que acabou por escrever para revistas infantis, porque era a forma que ele tinha de sobreviver e de ter voz. É curioso o facto de estarmos novamente aqui, numa espécie de perseguição à arte. E este espetáculo é também uma homenagem à arte, independentemente da nacionalidade.  

MHD: Portanto, a Patrícia é a responsável pela adaptação deste texto e o Ricardo pela encenação. Como é que se desenvolveu o processo criativo desta peça, primeiro na parte da adaptação do texto e depois na parte da encenação da própria peça? 

Patrícia Cairrão: Em termos de adaptação, foi muito interessante. Nós já conhecíamos estes textos do Daniil Harms. Já na nossa vida pessoal nos deliciávamos ao lê-los e a partilhá-los com outros. Então decidimos que iríamos adaptá-los em conjunto. Apesar de ter sido a quatro mãos, não foram quatro mãos ao mesmo tempo no teclado. Apenas sabíamos que queríamos este dispositivo cénico, com um MC, uma espécie de stand-up comedy, mas nonsense, e então dividimos o texto. O Ricardo adaptou uma parte e eu adaptei outra. Sabíamos que o que queríamos fazer dali era versar sobre esta tentativa de comunicação: a minha ideia e a maneira como eu a tento passar, mas que muitas vezes é mal interpretada ou mal entendida, mas eu acho que a ideia passou muito bem e a ideia com que tu ficaste, afinal, é outra completamente diferente. Então, a partir daí fomos buscar experiências que vivemos a coisas que vimos.  

Ricardo Santos: Nós escolhemos deixar de lado a poesia de Daniil e optámos por mais uma espécie de contos. Foi uma opção nossa a recolha de textos que nos fizessem algum sentido e textos que iam ao exagero e ao absurdo em termos de possível significado ou significância para quem os ouvisse. Mas optámos também por textos que tinham a ver muito com a linguagem e com a forma de expressar. Foi um trabalho de muita pesquisa! Por exemplo, um autor que nos influenciou muito pela sua loucura foi Andy Kaufman, que era um cómico americano que morreu no início dos anos 80. Quanto ao trabalho do ator, vimos filmes de espetáculos de Robert Wilson pela questão do ritmo da contenção da suspensão. E depois, estes espetáculos também têm um lado que nós ainda não falámos aqui, que é um lado radiofónico que nós queremos também introduzir através da criação de sons feitos na hora. Isso vai acontecer através do MC que é quem vai pôr os sons. É ao mesmo tempo, uma espécie de talk-show ao vivo! 

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MHD: Daniil Harms viveu num regime totalitário e teve que escrever para revistas infantis de modo a poder fugir ao regime que o oprimia e perseguia. Mas vocês tiveram uma liberdade gigante para pegar num texto de um autor e para chegar ao palco e dizer o que querem e pensam. Qual é a importância de hoje falarmos da liberdade de criação, principalmente, sendo o autor em que vocês se inspiraram russo e estando agora a Rússia envolvida de novo num regime totalitário?

Ricardo Santos: Eu acho que nem sequer dá para quantificar! Para já, isso nem deveria sequer ser questionável, mas acho que a maioria dos países questiona essas liberdades. A arte é sempre uma coisa que incomoda muito aquelas vozes que gostam muito de se manter num tipo de regime em que as coisas têm que ser todas muito bem comportadas, temos que ser todos pela mesma linha. Faz lembrar um filme do Chaplin que começa com carneiros a entrar todos alinhados e depois vão para a fábrica. Eu acho que a arte tem esse condão de ser um pouco incómoda. Agora temos falado ultimamente de um realizador iraniano que nós gostamos muito, que é o Jafar Panahi, que foi preso pelo regime iraniano por seis anos. Ele já estava com uma pena de 20 anos sem poder filmar, coisa que ele nunca deixou de fazer, felizmente! Aliás, um dos filmes dele chama-se mesmo “Isto Não é um Filme”.

Lá está, isto é importante nos tempos atuais, por isso tudo, não só pela Rússia estar a invadir um outro país, mas estes autores não têm nada a ver com esta gente. Estes autores defendiam um outro tipo de liberdade que estas pessoas hoje em dia não defendem. Existem muitos países que consideramos civilizados e de primeiro mundo a terem cada vez mais lugares sentados com pessoas que estão num Parlamento democrático e que não acreditam nessa mesma democracia. Por exemplo, tivemos o Governo italiano a cancelar artistas russos só porque eram russos.

Patrícia Cairrão: Nós já queríamos realmente fazer este texto, mas sentimos ainda uma necessidade maior ao ver isto acontecer a partir de fevereiro e as consequências que vieram após. Não estou a falar neste caso da invasão da Rússia, mas o que aconteceu aos artistas russos, precisamente só por serem russos, mas também a alguns ucranianos. Nós não queremos dar respostas a nada, queremos ajudar a refletir, a levantar perguntas, a provocar discussão ou provocar alguns pontos de interrogação nas mentes. Esta pessoa era uma lutadora da liberdade e que tinha que encontrar este subterfúgio de escrever como se fosse para crianças, de maneira a poder ter voz. Ora, o que nós queremos é ter voz e queremos dar voz a todos os artistas. Não vou entrar aqui em conspirações, mas às vezes parece que não dá muito jeito ter uma sociedade pensante, com pensamento crítico. É mais fácil ter mentes ‘acríticas’, porque são muito mais facilmente manipuláveis. E um dos nossos trabalhos é poder contribuir para o pensamento crítico. 

MHD: Pegando exatamente naquilo que vocês estavam a dizer, porque a Patrícia levantou exatamente esta questão, esta é a primeira peça de uma trilogia de autores russos. Porquê autores russos que ninguém conhece? 

Ricardo Santos: Isto tem muito também de um lado pessoal. Eu desde muito cedo tenho uma grande admiração pela literatura russa. Comecei por ler Tchekhov e Dostoiévski, depois descobri Bulgakov, Boris Pasternak e Maiakovski. E depois comecei a misturar o cinema russo do início do século, como EIsentein e Vertov, depois os pintores, Kandinsky, Malevich, e toda essa gente cheia de uma coisa louca. Aliás, o cinema e o teatro ganharam muito com isso, através do Stanislaski e com os autores e criadores.

Desde pequeno, eu li sempre muito! Lembro-me de ter lido “Taras Bulba”, de Gogol, quando era mais novo. E em 2018 decidimos fazer esta trilogia e a ligação entre os três autores selecionados é “O Coração de Cão“, de Bulgákov. É alguém que que apanha um cão vira-latas e o transforma em humano, supostamente o novo homem do séc. XX, que depois viu a vertente do regime soviético e a vertente nazi. O Block é um ironia fantástica porque ele agarra nas personagens cómicas e transforma-as num triângulo amoroso trágico. E isto foi tudo feito nos anos 20! Ao mesmo tempo, sempre me fez confusão, porque é que não abordamos estes autores!? A seguir, se for preciso, vamos para outra ideia, até porque já temos outra coisa para 2023. A trilogia não quer dizer que seja seguida. Mas sim, os russos porque há essa paixão pela literatura russa. E olhando para o país, há muita gente a fazer peças dos autores mais conhecidos, precisamente porque como são mais conhecidos, então atraem mais público também. 

Patrícia Cairrão: Eu a acrescentar aqui ao Ricardo, não cresci com os russos, conheci-os mais tarde na minha vida. Mas conheci este tipo de literatura que me prendeu pela crueza, pela poética e o lirismo, mas ao mesmo tempo o realismo. Gostei muito, por exemplo, de “O Arquipélago Gulag”, de Soljenítsin, que é mais atual e que combateu na II Guerra Mundial e teve preso num gulag durante não sei quantos anos. Ao fim e ao cabo, era uma persona non grata para o regime. Mas voltando à questão, porquê estes russos que ninguém conhece assim tão bem? Porque foram pessoas perseguidas, e, se calhar há aqui um denominador comum que se começa a desenhar nas criações que fazemos, tem um bocado a ver com esta procura pela liberdade artística e pessoal, a denúncia de regimes autocráticos e de regimes autoritários e que são repressores de liberdade. 

Ricardo Santos: É giro teres falado de “O Arquipélago Gulag”, porque o Soljenístin foi Prémio Nobel em 1970 e o regime não aceitou. Mas para esse livro ter saído, a secretária foi assassinada porque os manuscritos foram escondidos e só a secretária dele é que sabia do local e torturaram-na até à morte, mas ela não revelou nada. À conta disso temos hoje esse livro!

MHD: O que é que o público pode esperar desta peça? Na verdade, o que é que vai fazer com que o público vá assistir a este teatro?

Patrícia Cairrão: Sobretudo a perceção de que é comédia de alta qualidade [risos]! Nós falamos sobre estes temas que são muito importantes e que parece que não têm piada nenhuma, mas até com a maior das tragédias nós podemos fazer comédia, não é? E era aquilo que o Daniil Harms fazia também com os seus textos e que nós adaptámos, não desvirtuando. Portanto, este é um espetáculo para todas as idades sobre esse absurdo que muitas vezes existe na comunicação e nas tentativas de comunicação, mas, acima de tudo, vai ser um momento em que o riso vai ser o som que mais se vai ouvir. De facto, os textos que nós adaptámos com base nos textos de Daniil Harms são maravilhosos e o trabalho dos atores está a ficar extraordinário. Portanto, consideramos que vão ser cerca de 60 minutos muito bem passados. Basicamente, falamos de viagens ao Brasil, será que são mesmo viagens? Falamos de histórias de reis e rainhas, histórias de bandidos, histórias de Jardim Zoológicos, entre muitas outras coisas. Mas isso não vamos dizer mais nada agora [risos]!

 Aproveita a boleia de Patrícia Cairrão e Ricardo Santos e embarca nesta viagem pelo mundo da comunicação e liberdade!

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