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PENÉLOPE revisitado

“PENÉLOPE” é a exaltação do papel feminino e a sua condição de espera num país que envia os seus homens para a linha da frente.

O texto que deu vida a “PENÉLOPE” assenta numa coletânea de espólios particulares, que incluem aerogramas, cartas, fotografias, e testemunhos pessoais de pessoas que vivenciaram o período da Guerra Colonial (1961-1974). Talvez por isso mesmo, ao longo da peça deixe de haver um foco na personagem de Penélope, passando esta a incorporar dezenas de outras mulheres que ficaram condicionadas pela espera de um retorno que não sabiam ser certo.

PENÉLOPE
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Mal passa as portas do Auditório Acácio Barreiros, o público é desde logo convidadado a transportar a sua mente para meados dos anos 60. O mobiliário forrado a tecido florido que o palco com pano aberto deixa ver não permite que hajam dúvidas. Pequenos objetos como uma telefonia e um telefone de discar espalhados pelo cenário confirmam as suspeitas, estamos na década de 60! A telefonia começa a emitir uma mensagem relativa à Guerra Colonial e até os anúncios que lá são passados ajudam a criar um ambiente nostálgico. Segue-se a entrada de Penélope, interpretada por Patrícia Cairrão, e com ela vem um longo e prolongado silêncio. Apenas o corpo de Penélope fala, mas aquele silêncio diz tudo o que é preciso. A ausência de palavras simboliza também a ausência de alguém com quem falar, o vazio de uma casa que vive só pela metade. Naquele longo e doloroso período silencioso, vemos a atriz a cirandar pelo cenário, numa inquietude metafórica daquilo que o seu coração sente. Aos poucos, a personagem vai deixando em suspenso cada atividade que inicia. Uma vez mais, enaltece-se com esta ‘dança’, o desespero de estar só. A suspensão de cada atividade e movimento está para Penélope como a própria vida a deixou a ela… em suspenso. O público cansa-se de esperar pela emissão de uma palavra, tal como Penélope se cansa de esperar pelo regresso do marido enviado para o Ultramar.

PENÉLOPE
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O facto de Patrícia Cairrão ter feito parte do processo criativo de construção desta narrativa, uma vez que é co-criadora deste espetáculo, conferiu à atriz a sensibilidade necessária para dar vida a Penélope. Talvez por ter estado na linha da frente no que concerne à escuta de depoimentos e análise de testemunhos, conseguimos ver, através da interpretação de Cairrão, a dor clara de todas as mulheres que viram partir os seus homens. Como tal, é de destacar o quão bem a atriz consegue transpor os seus sentimentos num monólogo que se passa maioritariamente em silêncio. Trata-se quase de um jogo de mímica em que os sentimentos são adivinhados com um simples olhar de esguelha para uma fotografia ou um sorriso triste para uma carta amachucada. Sublina-se, então, que o uso que a atriz faz do corpo resulta em movimentos executados com muita mestria.

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Quanto à parte da multimédia, também ela muito presente neste espetáculo performativo, peca pelo facto de a projeção ocorrer somente a meio da tela, impedindo de ver por completo as fotografias e vídeos que vão sendo transmitidos. Em contrapartida, a parte da sonoplastia torna-se bastante relevante para a manuntenção de um ambiente nostálgico, uma vez que a dramatização é constantemente invadida por anúncios políticos radiofónicos, bem como por anúncios publicitários e canções da época. Presume-se que assim tenham vivido todas as donas de casa que ansiavam por notícias vindas dos territórios das antigas colónias portuguesas.

PENÉLOPE
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Em suma, “PENÉLOPE” acaba por ser uma fonte para nos ensinar os pormenores da guerra contados por aqueles que nela participaram. Pormenores esses lidos em cartas escritas na primeira pessoa que falam de detalhes que os livros de história insistem em ocultar. 48 anos após o início da democracia, a RUGAS teve a ousadia de expor as particularidades das condições em que estes soldados portugueses viviam, mostrando, assim, aquilo que na altura era proibido mencionar. E aqui nasce o lado bonito da ‘liberdade’, não tivesse a peça sido apresentada no emblemático dia 25 de abril. Mas talvez estejamos a falar de um período, que por ser tão português e tão consequente para os nossos antepassados, seja ainda difícil de exprimir, evitando-se a todo o custo falar dele para que a dor não seja relembrada. Talvez por isso mesmo, o Auditório Acácio Barreiros se tenha enchido de um público, maioritariamente sénior, irrequieto que não soube prestar à peça o silêncio que esta exigia.

“PENÉLOPE” nada mais é que um monólogo que encerra dentro de si a voz de milhares de mulheres. Num apelo à memória e à lembrança de um acontecimento que tantas vidas ceifou, torna-se impossível não fazer um paralelismo com a situção atual da Europa. A guerra entre a Ucrânia e a Rússia é um espelho do conflito entre a metrópole portuguesa e as suas colónias. Uma vez mais, os homens partem para o cenário de destruição, deixando para trás as mulheres que ficam com as vidas suspensas. Em suspenso fica também o público por não saber como acaba a história de Penélope, não fosse este um excerto de apenas um dia da sua vida de espera.

TEASER| PENÉLOPE ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO

“PENÉLOPE” estreou em outubro de 2022 e voltou a cena por ocasião das comemorações do 25 de abril.

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