Pedro Cabeleira, o realizador de "Entroncamento". ©José Vieira Mendes

Pedro Cabeleira, a Entrevista: Do “Entroncamento” a Cannes, sem apanhar o comboio | Diário do Festival de Cannes (Dia 6) 


Depois de se dar a conhecer com “Verão Danado”, o realizador português Pedro Cabeleira regressa com Entroncamento, a sua segunda longa-metragem, que promete expandir ainda mais o seu universo cinematográfico: um retrato do submundo e de uma juventude sem perspectivas numa pequena cidade do centro do país. Depois de ver-mos o filme ainda em Lisboa, conversámos com o cineasta sobre a génese do projeto Entroncamento, que é hoje exibido na secção L’ACID do Festival de Cannes 2025.

Entre o real e o estranho, o quotidiano noturno e o insólito da pequena delinquência juvenil, as tensões culturais entre diferentes comunidades, em Entroncamento, Pedro Cabeleira leva-nos numa viagem cinematográfica até uma das localidades mais emblemáticas de Portugal — cruzamento de comboios e de gentes, cidade de passagens e de encontros.

Entroncamento
Um cenário noturno de “Entroncamento”, coma protagonista Laura (Ana Vilaça).©OPTEC Filmes

MHD: O que te levou ao Entroncamento, literalmente e cinematograficamente? Tens alguma relação emocional ou simbólica com a cidade?

Pedro Cabeleira: Sim, sou de lá, cresci no Entroncamento. Quando acabei o Verão Danado, já vivia em Lisboa, mas ia visitando a cidade. Um dia, um amigo meu de lá, que fazia rap, convidou-me para realizar um videoclipe. Aceitei, e depois desse processo comecei a passar mais tempo por lá.

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MHD: Foi aí que percebeste que havia ali material para um filme?

PC: Sim. Convivi com algumas pessoas da minha idade, fui ouvindo histórias e sentindo o que era a vida de quem ali ficou. Achei que valia a pena falar sobre isso.

Pedro Cabeleira
Pedro Cabeleira é natural do Entroncamento. ©José Vieira Mendes


MHD:
O filme tem uma atmosfera muito própria. O nome Entroncamento refere-se não só à cidade, mas também à ideia de cruzamento — de caminhos, pessoas, culturas. Há naturais, forasteiros, ciganos, pessoas de origem africana, ucranianos… Como é que esse ambiente influenciou o filme?

PC: O filme é, sobretudo, um retrato do que era aquela cidade naquele momento. E é um sítio onde existem, de facto, tensões — culturais e raciais — por causa do confronto entre pessoas mais conservadoras e outras comunidades. O Entroncamento tem uma história marcada por migrações: começou por receber muitos militares e ferroviários de várias regiões do país. Sempre foi uma cidade operária, mais urbana do que rural. Com o tempo, e devido à proximidade a Lisboa, começou a atrair outras comunidades — sobretudo agora, com o aumento do custo de vida na capital. O Entroncamento tornou-se mais acessível, e muitos acabam por se fixar ali. Mas é uma cidade pequena, e esta confluência de comunidades nem sempre é fácil. Daí as tensões que o filme tenta captar.

A tensão entre as várias comunidades

MHD: Um desses focos de tensão parece ser a relação entre a população cigana e não cigana. Como abordaste isso no filme?

PC: Desde que me lembro, sempre foi o principal foco de tensão e xenofobia na cidade. Não consigo explicar exatamente porquê. Não há uma única “comunidade cigana”, são várias famílias. Existia um bairro social — o Bairro Frederico Ulrich* — que era conhecido como o “bairro dos ciganos”, onde vivia grande parte dessa população. Hoje há outras comunidades a chegar, e o filme tenta retratar esse novo contexto. Essas tensões estão muito ligadas ao momento político que vivemos e ao crescimento da extrema-direita. O filme não é só sobre o Entroncamento — é também sobre Portugal.


Uma história de amigos de infância

MHD: A história foi construída a partir das experiências dos teus amigos de infância e das pessoas que ficaram por lá?

PC: Sim. Mas o meu objetivo não era contar uma história linear — era mais transmitir uma sensação: a de quem ficou por lá, sem grandes expectativas. Como lidam com a rotina, com a monotonia. Não é bem frustração — é mais uma procura de escape. Muitas vezes o refúgio está no álcool, nas drogas, ou em pequenos delitos. Nada muito violento, mas comportamentos que servem para escapar à estagnação. Era isso que me interessava retratar.


MHD:
A personagem da Laura (Ana Vilaça), uma forasteira vinda de um bairro problemático do Porto, representa esse olhar de fora. Achas que o Entroncamento, sendo uma cidade pequena, pode facilitar essa tentativa de mudar de vida? Isso também aconteceu contigo?

PC: Talvez. Algumas pessoas podem encontrar ali um recomeço. Mas a Laura (Ana Vilaça) foi uma personagem completamente inventada — não está baseada em ninguém real. Criámo-la para ajudar a desmontar aquele universo, para dar uma perspetiva exterior e abordar temas mais a fundo. Era importante ter esse olhar de fora, porque o meu já não era totalmente de dentro. Filmar a partir desses dois pontos de vista torna o filme mais rico.

Uma mistura de actores com não profissionais

MHD: Trabalhaste com atores profissionais e não profissionais. Como foi essa mistura? Há interpretações incríveis.

PC: Alguns já os conhecia e escrevi os papéis a pensar neles. Outros são pessoas do Entroncamento, algumas participaram no videoclipe que fiz lá. Fiz também um casting aberto, sem restrições de idade ou aspeto. As pessoas iam aparecendo — às vezes vinham ter comigo a perguntar se podiam entrar no filme. Cheguei a inventar personagens para elas. A parte mais difícil foi encontrar atores ciganos da cidade. Aí tive ajuda da Associação Techari, que me ajudou a encontrar o Henrique Barbosa, que faz de Gilinho, e a Maria Gil, que faz de mãe dele.

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MHD: A estética do filme é muito intensa. Sentes que houve uma evolução em relação ao Verão Danado? A fotografia continua a ser da Leonor Teles…

PC: Sim. Mantivemos um estilo de cinema de guerrilha — câmara ao ombro, imagem “suja”, com textura. Mas houve uma evolução: é mais cuidado, mais diversificado, com ideias novas de planificação. Há relações com o Verão Danado, claro — são dois filmes que podem ser espelhos um do outro. Mas aqui aproximámo-nos mais do cinema de género, e filmámos com mais meios, com uma câmara que o Verão Danado não teve.

Entroncamento
“Entroncamento” combina actores com não profissionais e gente da terra. ©OPTEC Filmes

MHD: Lisboa, Torres Novas, Entroncamento… estás a construir um percurso geográfico. Vais continuar por esse território?

PC: Depois de filmar o Entroncamento, voltei a mudar-me. Agora estou em Cacilhas, em Almada. Também é bom. Mas não sei o que vou fazer a seguir. Está tudo em aberto.


L’Acid a secção perfeita para a estreia do filme

MHD: E Cannes? Estás certamente contente com esta seleção para a L’ACID, uma mostra paralela que tem ganho cada vez mais destaque.

PC: Sim, claro. Está a correr tudo muito bem. Já conseguimos uma distribuidora internacional para o Entroncamento. Acho que estamos a chamar a atenção — até mais do que com o Verão Danado, que estreou em Locarno.

Entroncamento
Henrique Barbosa é um dos actores de etnia cigana. ©OPTEC FILMES

MHD: São festivais com perfis muito diferentes.

PC: Exato. Mas acho que o filme está bem na L’ACID. É uma secção mais punk, e o filme também tem esse lado. Estou contente. Vai ajudar bastante — e vai ser fixe.

* (Nota: a Câmara Municipal do Entroncamento anunciou a demolição do bairro, estando em curso a construção de novas habitações, com conclusão prevista para junho de 2026.)

JVM


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