Imagem dos bastidores de "By Flávio" | © No Comboio

Que Mulheres Serão Estas?, a Crítica | Três curtas portuguesas sobre a mulher moderna

“Que Mulheres Serão Estas?” é um programa de curtas-metragens feitas em Portugal, todas elas focadas em figuras femininas. Tão distintas quanto semelhantes, as protagonistas destas narrativas oferecem uma visão multivalente do que é ser mulher no mundo moderno. Entre liberação e irreverência, os filmes são trabalhos imprescindíveis para fãs do nosso cinema nacional.

“UM CAROÇO DE ABACATE” de Ary Zara

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© No Comboio

Narrativas sobre mulheres trans tendem a cair em clichés, especialmente focados no lado trágico da vida. Quando a produção incide em trabalhadoras do sexo, então o gosto pela miséria pornográfica só sobe. Tudo isto para dizer que “Um Caroço de Abacate” tinha tudo para dar errado, mas, em jeito de surpresa e brisa de ar fresco, foge às boas intenções que resvalam no lugar comum transfóbico. Parte deste milagre devém da presença de Gaya de Medeiros no papel principal de Larissa, uma imigrante brasileira em Lisboa que já está habituada aos ritmos das noites na capital, o jogo do engate e toda a dança com potenciais clientes.

A atriz é luminosa, uma explosão de carisma que repudia todas as possibilidades de caricatura e vitimização que um argumento menor teria imposto sobre a personagem. A sua Larissa está sempre em controlo da situação. Assim é, quando se aproxima de um carro que há horas se encontra na proximidade das senhoras da noite. Lá dentro está Cláudio, um chaser travequeiro como tantos outros, preso às inseguranças de um homem de bem, cis e hétero, mas dominado por desejos que a sociedade determina transgressivos. A interação entre os dois começa na incerteza dele e na confiança dela, mas depressa se desenvolve numa conversa franca e amistosa.

O filme de Ary Zara retrata uma madrugada partilhada na companhia de um estranho com quem se pode ser mais sincero que com o amigo de longa data. No entanto, sentimos o contraste entre as expetativas das duas figuras. Larissa não tem esperança de encontrar o amor da vida, mas quer divertir-se. Cláudio está a enveredar no desconhecido, uma aventura cheia de trepidação, alguma sinceridade retratada com maravilhoso naturalismo por Ivo Canelas. O dueto deles é exultado pela fotografia de Leandro Ferrão, capaz de capturar a qualidade de estrela da atriz principal, o brilho de diamante preto e âmbar reluzente da noite lisboeta.

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Com produção executiva de Elliot Page, música de Xinobi e aquela maravilhosa realização de Ary Zara, “Um Caroço de Abacate” fez travessia pelos festivais internacionais. Teve estreia mundial no IndieLisboa de 2022, depois seguiu para Londres e Los Angeles, Brest, Dresden e tantos outros. Ganhou vários prémios no caminho e até conseguiu ser finalista na corrida para o Óscar de Melhor Curta-Metragem live-action, feito raro no contexto do cinema português.


“AS SACRIFICADAS” de Aurélie Oliveira Pernet

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© No Comboio

O que vemos quando olhamos o fogo? Há tempo imemorial que a humanidade fita a chama, em busca de calor e conforto, por vezes em busca de algum fascínio, algo que transcende o quotidiano e revela uma verdade maior, profunda, secreta. O fogo acalenta e com isso pode preservar a vida. Mas também mata e destrói. Todos os verões, vemos prova disso mesmo nos noticiários e na paisagem verdejante que gradualmente se reduz a um império de cinzas. Perante todos os potenciais e contradições do fogo, Otília fica transfixa, mirando algo que poderá ser uma fuga da sua vida, quiçá a fuga de si mesma.

Como tantas outras mulheres na meia-idade e na classe trabalhadora, ela sente as consequências de múltiplas crises económicas na pele. Além disso, vê-se encurralada pelo dever familiar, cuidando da mãe nas fases finais da demência, sem a ajuda de mais ninguém. Quando se levanta a possibilidade dessa senhora andar em ação criminosa na confusão constante de cada dia, a tensão só cresce. Como é que Otília pode estar lá pela figura materna e ainda ganhar dinheiro para as sustentar? A solidão persiste, corrói e erode, mesmo no seio familiar. Nisto, as responsabilidades são como a terra sobre a cova. Lá vai ela, sentindo-se soterrada, sem ar, sem salvação.

A realizadora Aurélie Oliveira Pernet rima o suplício das suas personagens com uma paisagem pastoral à beira do apocalipse. Na sua medida, é como se a interioridade se expandisse para fora da psique, sem que, contudo, “As Sacrificadas” se percam em abstrações ou fantasias. É um registo de simples elegância e eficácia dramática, articulando um estudo de almas penosas que se constrói muito à base do trabalho de ator. Como Otília, Tânia Alves é um assombro, perdendo-se dentro de si mesma como tanta gente no precipício do desespero. Se possível, Valerie Braddell é ainda melhor, iluminando a lucidez perdida na idade avançada, o vazio que fica.

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“As Sacrificadas” teve estreia mundial no Festival de Roterdão e ainda marcou presença no Curtas Vila do Conde, em Kyiv e Clermont-Ferrand. Nos Prémios Sophia, o filme foi nomeado para Melhor Curta-Metragem e valeu múltiplas nomeações para os Prémios CinEuphoria também. Nesses últimos, Tânia Alves ganhou o galardão para Melhor Atriz numa Curta Nacional.


“BY FLÁVIO” de Pedro Cabeleira

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© No Comboio

Uma mulher de fato-de-banho posa para a câmara. Atrás dela, em pano de fundo colorido, estende-se uma paisagem estival de fazer inveja. Mas atrás da câmara, uma voz infantil dá-lhe direções. Ele é Flávio, o filho pequeno de Márcia, uma aspirante a “influencer” que passa o resto do dia no transe e no lavoro das redes sociais. Esse mundo digital impõe-se sobre o mundano, janelas e colagens à mistura com a fotografia granulosa de Leonor Teles, um cocktail multimédia que ilustra as forças dominantes na vida de Márcia. Quando uma celebridade menor do Instagram reage aos seus posts com interesse, como haveria ela de resistir? São as prioridades de uma vida vivida entre a materialidade comum e a hiper-realidade online.

O único problema é que, sem babysitter disponível, Márcia tem que levar Flávio a esse encontro – mais audição para um videoclip vulgar que conversa pessoal. Outros cineastas poderiam injetar muito moralismo no exercício, mas Pedro Cabeleira tem uma visão mais ambivalente, generoso para com as suas personagens e interessado nos compromissos e sacrifícios que existem até no foro da falsidade virtual. Márcia é uma mãe solteira a tentar vingar num mundo onde tudo é transacional, as oportunidades são poucas e o pragmatismo pode manifestar-se em forma de crueldade. Longe de ser vilificada, ela é retratada com um candor incomum, um interesse genuíno numa personalidade facilmente reduzida ao arquétipo.

O trabalho fotográfico de Teles sugere o contraste entre o analógico e o digital, a incompatibilidade e intersecção dos diferentes contextos em que Márcia se move, as muitas obrigações que ela negoceia. Além disso, “By Flávio” é, em si, um filme sobre a construção de imagens. Mas Cabeleira vai mais longe ainda, mostrando-se reticente quando o espetador poderia esperar um melodrama mais extravagante. Da mesma forma, os atores destilam as ideias principais do texto sem seguirem os ditames padronizados de uma sátira. Por outras palavras, há mais humanidade do que se supunha aqui, e muita dessa qualidade devém do trabalho de intérpretes como Ana Vilaça e Tiago Costa.

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“By Flávio teve a sua estreia absoluta no Festival de Berlim de 2022, onde competiu pelo Urso de Ouro para Curtas-Metragens. Depois fez carreira por Chicago, Valladolid e também o nosso muito amado IndieLisboa. Entre palmarés nacionais, o filme ganhou o Prémio Sophia e foi candidato a oito galardões da CinEuphoria. No final, constou na lista das Melhores Curtas-Metragens Portuguesas do ano.

 

Esta coleção de curtas chega aos cinemas amanhã, dia 3 de outubro, pela mão da distribuidora No Comboio. Não percas!

Que Mulheres Serão Estas?, a Crítica
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Movie title: Um Caroço de Abacate, As Sacrificadas, By Flávio

Date published: 2 de October de 2024

Country: Portugal

Duration: 68 min.

Director(s): Ary Zara, Aurélie Oliveira Pernet, Pedro Cabeleira

Actor(s): Gaya de Medeiros, Ivo Canela, Jó Bernardo, Tânia Alves, Valerie Braddell, Adriano Luz, Ana Vilaça, Tiago Costa, Anabela Moreira

Genre: Drama, Comédia, Curta-Metragem, 2022

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

“Que Mulheres Serão Estas?” demonstra uma pluralidade de perspetivas no cinema português. As três curtas inseridas no programa incidem as suas narrativas sobre figuras femininas, fugindo ao cliché e subvertendo algumas expetativas mais nocivas. São trabalhos que demonstram grande apreço pelas suas personagens e um empenho em vê-las na sua totalidade, além de julgamentos e moralismos desnecessários. Entre “Um Caroço de Abacate,” “As Sacrificadas” e “By Flávio,” denota-se uma ênfase no trabalho de ator, prova maior que a produção nacional está cheia de talentos polivalentes, tanto no contexto formal como no interpretativo.

O MELHOR: A luminosidade de Gaya de Medeiros em “Um Caroço de Abacate,” como ela faz de Larissa um exemplo de autodeterminação num mundo que tantas vezes a quer negar a mulheres trans. O dueto amargurado de Tânia Alves e Valerie Braddell em “As Sacrificadas,” filha devota e mãe perdida nos píncaros da solidão, do desespero. Por fim, aplaudimos Ana Vilaça em “By Flávio,” por fugir a tons jocosos e desumanos, por encontrar a dignidade da sua profissional do Instagram.

O PIOR: O foco no ator deixa pouco espaço para o deslumbramento audiovisual, especialmente quando o close-up e o plano médio são reis. Enfim, não se pode ter tudo e entendemos as prioridades deste cinema centrado na personagem.

CA

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