10ª Festa do Cinema Italiano | La pelle dell’orso, em análise

Entre o western tradicional e o conto folclórico, La pelle dell’orso é um belíssimo conto sobre a relação do homem com a natureza, a relação entre pais e filhos e o duro processo de crescimento. O filme faz parte da secção competitiva da 10ª Festa do Cinema Italiano.

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Desde os primórdios do cinema americano, que o western, enquanto género cinematográfico, tem sido um veículo pelo qual uma nação cristaliza e assimila a sua própria mitologia. Desprovidos de folclore milenar, como acontece na Europa, os EUA e seus cineastas viram o Oeste Americano como a sua Camelot, o seu palco de lendas violentas de onde germinava a sua noção contemporânea de pátria. Como tal, o western refletiu não só o passado, como uma identidade nacional em evolução de uma forma incomparável com qualquer outro género cinematográfico. No início, tínhamos a glória do passado, um mito açucarado e polido à boa moda dos estúdios de Hollywood e seu inato glamour. Chegado o pós-guerra, o Velho Oeste tornou-se a plataforma pela qual inúmeros cineastas exploraram e criticaram a sociedade americana e seus valores.

Não é por acaso que, na década de 50, existem multitudes de westerns alegóricos sobre venenosos preconceitos e hipocrisias sociais relevantes à época em que os filmes estrearam. Depois da queda do sistema de estúdios e com o apogeu da década mais cínica e antipatriótica que os EUA já viveram, o western revisionista ganhou relevância e o Velho Oeste passou de alegoria para o presente e tornou-se num mito a ser dissecado e desconstruído. Ao mesmo tempo que tudo isto acontecia, outros cinemas nacionais olhavam para o western, ora como fonte de mecanismos e códigos cinematográficos, ora como base para a construção de novos géneros alternativos.

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A começar no final dos anos 40 e chegando ao seu apogeu durante a década de 60, nasceu uma alternativa às histórias de cowboys americanas, o spaghetti western italiano. Longe de serem acutilantes desconstruções ou glorificações da identidade nacional americana, estes filmes agarraram-se à ideia de mito promulgada pelas obras que os inspiraram e dai construíram um género cinematográfico muito semelhante mas importantemente distinto do seu irmão do outro lado do Atlântico. Nos filmes de realizadores como Sergio Leone, Gianfranco Parolini ou Sergio Corbucci, o passado histórico americano é paradoxalmente mostrado com muito mais realismo material do que os filmes de Hollywood, mas é também filmado com um nível de mitificação primordial que aproxima esses projetos mais da ópera do que da coboiada tradicional. Mesmo quando se tratavam de comédias a parodiar as fórmulas americanas, o resultado final tem um certo tom de ópera bufa que praticamente grita “ITALIANO!”.

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Toda esta conversa sobre o spaghetti western e sua contraparte americana serve de introdução a La pelle dell’orso de Marco Segato, um filme italiano que segue a tradição do western. Só que, mais do que a subversão do western revisionista, ou a grande dimensão operática dos spaghetti westerns, esta história vai buscar códigos fílmicos do western mais primordial, onde arquétipos simples delineavam mitos americanos reminiscentes do folclore ancestral europeu. Esta é a história de Domenico, um jovem de 14 anos a viver com o pai, chamado Pietro, nas montanhas de Trentino nos anos 50. Uma noite, a comunidade rural em que vivem é atacada por um urso que, devido ao seu comportamento sanguinário, recebeu o nome de “el Diàol”. Pietro, que é um bêbado e pária social cuja mulher morreu enquanto ele estava preso, faz uma aposta com o seu patrão e líder da economia local e vai à caça do animal para as montanhas. Domenico acaba por seguir o seu pai e os dois caçam e são caçados pelo diabólico urso nas profundezas da majestosa natureza.

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Um jovem e seu pai à caça de um monstro no meio da paisagem natural intocada pela mão do homem. É fácil perceber a dimensão folclórica deste filme, assim como a sua natureza enquanto história de uma ventura ritual, de uma viagem iniciática que faz colidir o homem com o potencial destrutivo da natureza no intuito de construir uma espécie de bildungsroman. As figuras da ação são arquétipos e não personagens, sendo que o próprio urso é mais símbolo que animal. Na sua passagem, fica sempre um rasto de destruição, carcaças de animais putrefactos a fumegar de varejeiras, ramos partidos, troncos arranhados e caminhos desbravados à força bruta pelo meio da floresta. Ele é a morte, ele é o lado intrinsecamente destrutivo da natureza, ele é a crueldade cósmica que transcende a compreensão humana, ele é o diabo que o herói tem de confrontar.

Toda a formalidade do projeto salienta este jogo de arquétipos, esta construção de um conto folclórico que, apesar de ter sido concebido na nossa época, tem a aparência de pertencer a uma época já longínqua. Veja-se o modo como o realizador Marco Segato e a diretora de fotografia Daria D’Antonio filmam a paisagem natural em pinturas épicas que esmagam a figura humana com a sua grandiosidade, enquanto os espaços feitos à escala do homem são apresentados em quietos tableaux pintados co sombras espessas e rasgos de luz poeirenta. A história pode passar-se especificamente nos anos 40, mas toda a sua filmagem remete para um cenário temporalmente indefinido, sendo que a ação principal poderia ocorrer nesta época ou mesmo na Idade Média sem muitas alterações necessárias.

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La pelle dell’orso não é ópera italiana como os spaghetti westerns de outrora, mas algo mais tradicional e antigo. Na verdade, a grande marca estilística que deliberadamente pisca o olho ao western sem filtrar o seu jogo através de imagética intemporal é a banda-sonora. Composta por Andrea Felli, a música pontua o filme com dedilhares de guitarra que incitam o desabrochar de imagética americana na imaginação do público. Se formos extremamente generosos e insistentes nesta comparação, poderíamos até apontar para o trabalho dos atores como um indicador estilístico. Afinal, no papel de Pietro, Marco Paolini alcança aquele delicado equilíbrio perfeito entre uma lenda e uma pessoa de carne e osso que atores como Lee Remick e Clint Eastwood nos westerns italianos dos anos 60 e 70. Quando o patriarca se começa a revelar mais ao filho, quase sentindo a sua impendente e inevitável destruição, há grande poder emocional no trabalho do ator, sem nunca tornar a sua prestação num feito de caracterização demasiado específica.

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O jovem Leonardo Mason, como Domenico, não se desembaraça de modo tão hábil como o seu colega adulto. Com os ritmos vagarosos do filme, que parece mais interessado em capturar o tempo de “ser” do que o tempo dramático da ação, a prestação de Mason até nem é incoerente, exibindo um naturalismo amador típico de intérpretes inexperientes e jovens. No entanto, como centro deste conto cinematográfico, a sua total indefinição pessoal e falta de carisma acabam por se tornar frustrantes e roubam ao filme muito do seu hipotético impacto emocional. Efetivamente, desprovido de um herói ao qual a audiência se possa agarrar, La pelle dell’orso acaba por se tornar num bom exercício intelectual e formal sobre o mito folclórico tipificado pelo western americano mais do que uma eficiente narrativa tradicional de mérito próprio.

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O MELHOR: A belíssima construção formal de todo o filme.

O PIOR: Poderíamos acusar o filme de ser incrivelmente carente de qualquer tipo de energia criativa, mas a falta de inovação e abjeto tradicionalismo são claramente intencionais e bem empregues. Infelizmente, isso deixa-nos o jovem Leonardo Mason como o pior aspeto de La pelle dell’orso.



Título Original:
La pelle dell’orso
Realizador:
Marco Segato
Elenco:
Leonardo Mason, Marco Paolini, Lucia Mascino, Mirko Artuso
Drama, Western, Aventura | 2016 | 92 min

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