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Petite Maman – Mamã Pequenina, em análise

Em março chegou ao nosso país “Petite Maman – Mamã Pequenina”, a longa-metragem nomeada ao BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro da cineasta Céline Sciamma.

MARION, JENNY E OS TEMPOS CRUZADOS

Depois de confirmar as suas melhores credenciais enquanto cineasta e autora numa das melhores e mais palpitantes produções de 2019, o luminoso PORTRAIT DE LA JEUNE FILLE EN FEU (RETRATO DA RAPARIGA EM CHAMAS), foi com grande expectactiva que visionei o mais recente PETITE MAMAN (MAMÃ PEQUENINA), 2021, de Céline Sciamma. E quando o resultado não contraria o que se esperava encontrar e o entusiasmo pela sua obra se reforça, só me resta aplaudir a capacidade mais uma vez demonstrada pela realizadora de manter o seu alto nível de exigência, sobretudo visível na concretização de um projecto ficcional construído num sistemático jogo de dimensões, passadas, presentes e futuras, onde as protagonistas, mãe e filha, com ou sem a mesma idade, não são necessariamente espelho e reflexo uma da outra, mas antes peças soltas e unidas num jogo mais vasto de correspondências entre ESPAÇO e TEMPO. Um jogo dinâmico jogado num contexto de plena cumplicidade material e espiritual que completa, preenche e anula os vazios na vida de ambas, como se a gestão das suas regras fosse um exercício de palavras cruzadas onde muitas vezes a inscrição da palavra justa, na horizontal, permite a revelação da palavra justa, na vertical.

Petite Maman - Mamã Pequenina
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Logo de início, o filme abre com o grande plano do rosto de uma senhora. Num simples movimento de câmara que amplia subtilmente a escala anterior, ficamos a saber que está acompanhada de uma menina, Jenny (Joséphine Sanz). Estão as duas debruçadas sobre um caderno de palavras cruzadas. Depois a menina despede-se da senhora, levanta-se e sai do quarto onde ambas se encontravam. De seguida, Jenny percorre o corredor do que parece ser uma casa de repouso, parando em alguns dos quartos contíguos para se despedir das outras utentes com a mesma e repetida saudação, au revoir (adeus). Por fim, quando chega ao fundo do corredor, hesita antes de ir ao encontro de uma mulher ainda jovem. Essa nova personagem, a sua mãe (Nina Meurisse), está a esvaziar o quarto e, ao vermos a cama sem ninguém, não precisamos de muito mais informação visual para perceber o que se passou. Jenny entra no quarto. Mais uns segundos e a menina pergunta se pode ficar com uma bengala que estava em cima da referida cama. Podemos logo adivinhar de quem era o objecto, mas naquele momento isso não passa de um pormenor que guardamos na memória. Mais para a frente iremos saber de forma inequívoca ser uma recordação muito particular da falecida avó. E só então se observa um corte neste primeiro plano, na verdade um plano sequência. Do ponto de vista da imagem, do som, da cenografia, dos adereços de cena, do guarda-roupa e da direcção de actores, não se podia ser mais sintético e de certo modo mais conforme com a cartilha do como se deve fazer. No entanto, esta planificação, só na aparência muito simples e desenhada a regra e esquadro, possui no seu interior uma força vital que contamina de forma admirável o que até aí vimos e iremos ver, a sustentabilidade objectiva e subjectiva de uma inegável exposição de emoções. Estamos aqui em presença de um exemplo maior de como se pode contar em cinema uma história feita seguramente de muitas histórias, posicionando desde cedo as personagens que lhe dão corpo e alma no portal de uma outra história que a partir daquela se vai contar. Tudo isto num período de poucos, muito poucos minutos. No caso do citado plano inicial, em menos de dois minutos. E isto tem um nome, ou seja, pleno domínio da economia narrativa. Será a sua aplicação prática que irá determinar a partir dali a definição geral e a eficácia de um guião que nos dá os sinais necessários e suficientes do presente para, através do puro fluir da “verdade” contida na manipulação final da linguagem cinematográfica, nos fazer viajar até ao passado onde Jenny irá encontrar perto da casa que era a da sua avó uma outra menina, Marion (Gabrielle Sanz), que não podia ser mais parecida com ela. Depois de estabelecerem uma amizade feita de cumplicidades no decurso de brincadeiras juvenis, onde o lado mais airoso e inocente da sua relação parece vir ao de cima ao contrário de outras alturas em que se comportam de forma mais adulta, Jenny entra na casa de Marion para se refugiar da chuva intensa que cai no bosque onde se haviam cruzado pela primeira vez. Esta casa não passa de uma versão similar mas mais antiga da que víramos momentos antes, a casa onde habitava a avó. No interior da casa de Marion, pouco a pouco, Jenny vai encontrar, ao percorrer sorrateiramente os seus quatro cantos, os sinais que a fazem acreditar ser Marion a sua “mamã pequenina”, e a mãe desta a sua própria avó.

Petite Maman - Mamã Pequenina
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Neste ambiente, meio mágico e meio misterioso, que inevitavelmente nos faz interrogar cada gesto e cada palavra das protagonistas, a realizadora propõe ao espectador uma meticulosa viagem por uma espécie de limbo onde iremos acumulando informação sobre o comportamento das duas crianças, uma filigrana sucinta e precisa sobre as diferentes dimensões da estrutura fílmica que se articulam particularmente bem na dinâmica da montagem. Pelo meio damos conta da súbita e algo inexplicável ausência da mãe de Jenny, assim como da relativa passividade do pai (Stéphane Varupenne) que só parece estar interessado em despachar a missão que os levou a casa da avó, despejar os móveis, livros, objectos pessoais de vária ordem e limpar assim o que resta do passado e, até certo ponto, o que sobra da memória de alguém que naturalmente não se apaga de um dia para o outro e que obviamente ainda subsiste. Deste modo, acção e emoção fundem-se num caminho de sentido único e na direcção de um reencontro existencial, mãe e filha, que pode, mas não precisa de ser interpretado de forma racional. Na linha da meta estão lá os pontos de partida e de chegada, a relação orgânica de dois seres, a percepção de uma família que sentimos mais forte e pacificada no abraço derradeiro. Está lá a lenta superação da dor, assim como a capacidade mútua de ultrapassar o sentimento de perda que qualquer morte provoca, sem esquecer ou ignorar as consequências no plano individual e colectivo dos que compõem a estrutura familiar. Tudo perfeito, e ponto final.

Petite Maman - Mamã Pequenina
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Destaque ainda para a Direcção de Fotografia de Claire Mathon, que usa a economia visual da mesma maneira que a realizadora usa a economia narrativa. Nos exteriores, os enquadramentos sugerem o estilo das gravuras de certos livros infantis e o imaginário romântico de um jardim secreto onde Jenny e Marion constroem uma cabana que serve de refúgio e local de consolidação da sua relação, uma espécie de útero materno circundado pelas cores do Outono que prefiguram o início de um ciclo de repouso da Natureza que na realidade antecede o Inverno, mas igualmente o posterior e fulgurante despertar da Primavera. Nos interiores, o estilo e a paleta de cores mudam um pouco, mantendo-se não obstante o rigor na procura de imagens que correspondam a uma acção pura, associada ao esforço de composição dos actores, seja no contexto de uma conversa circunstancial, de uma simples e frugal refeição, seja numa mais complexa e reveladora confissão.

Em resumo, um filme a não perder.

Petite Maman - Mamã Pequenina, em análise
Petite Maman - Mamã Pequenina

Movie title: Petite Maman

Date published: 16 de March de 2022

Director(s): Céline Sciamma

Actor(s): Joséphine Sanz, Gabrielle Sanz, Nina Meurisse, Stéphane Varupenne De La Comédie Française, Margot Abascal

Genre: Drama, 2021, 73min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Destaque maior para a planificação e montagem, corpo e alma de uma estrutura fílmica baseada num argumento e guião que desenha de forma magistral as linhas gerais de uma narrativa moldada na combinação de passado e presente.

Nota positiva para a Direcção de Actores, missão que seguramente não foi a mais fácil de superar de entre os diferentes desafios da rodagem. Seja como for, destaque merecido para a prestação das irmãs gémeas, Joséphine Sanz e Gabrielle Sanz, duas crianças protagonistas mergulhadas num limbo de fantasia e realidade e numa singular história de descoberta mútua e de superação existencial.

Destaque ainda para a Direcção de Fotografia, onde se prova que Céline Sciamma sabe bem escolher os que melhor interpretam as suas ideias e o seu estilo.

CONTRA: Quando um filme se apresenta assim, quase perfeito, quase apetece não acrescentar mais nada. No entanto, há que referir um momento, o único que considero mais frágil: Jenny está com auscultadores a ouvir algo que nós não ouvimos e Marion pergunta-lhe se é a música do futuro.  Nesta altura, disse cá para mim, “Não, por favor, não nos façam ouvir seja o que for”. Mas, maldição, ouvimos, e digo-lhes muito sinceramente, não se ganha nada com isso. Puro ruído, ainda por cima numa sequência deslocada do eixo da acção principal e cujo valor emocional passa muito mais pelo lado estético do que pelo rigor dos enquadramentos e pela competência dos actores na credibilização e valorização da narrativa, como acontece nos restantes e muito bem concebidos 98% do filme. Mesmo assim, os 2% de reparo não me impedem de repetir o que já disse anteriormente: MAMÃ PEQUENINA, um filme a não perder.

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