Amor de Improviso, em análise
“Amor de Improviso” é uma comédia romântica que quebra tradições e convenções. Kumail Nanjiani e Emily V. Gordon decidiram contar a sua história, onde a multiculturalidade e a reflexão sobre religião marcam a diferença.
Todos os anos há pelo menos uma comédia que é muito mais do que o rótulo com que nasceu. Em 2016, “Don’t Think Twice” pegou num grupo de amigos que faziam teatro de improvisação e construiu na verdade um brilhante retrato sobre sucesso e falhanço, através de um excelente argumento de Mike Birbiglia que passou despercebido a uma fatia significativa do grande público. Este ano há “Amor de Improviso”, um possível herdeiro espiritual da obra acima referida. Mas deste toda a gente vai ouvir falar. E ainda bem.
Reza a lenda que em 2012 e depois de se cruzarem no podcast “You Made It Weird” Kumail Nanjiani ficou inspirado e convencido por Judd Apatow (um verdadeiro olheiro de talentos, com toque de Midas em tudo o que é comédia) de que a sua história com a sua mulher, Emily V. Gordon, podia dar um filme. Não se trata de uma vida que dava um filme indiano. Trata-se de um filme norte-americano sobre um paquistanês do século XXI.
Kumail – talvez o conheçam como Dinesh, a sua personagem de “Silicon Valley” – e Emily escreveram juntos “Amor de Improviso”, e Hollywood apaixonou-se por eles.
Numa comédia romântica e genuína que finta vários clichés do género e que demonstra que ainda há espaço para originalidade, o segredo está logo no início. Kumail apresenta-se – a si e, indiretamente, ao filme – num número de stand-up dedicado às suas origens. Às raízes e às diferenças culturais entre os EUA e o Paquistão. E a multiculturalidade confirma-se mais tarde como a camada que faz a diferença e que pode perfeitamente colocar “Amor de Improviso” na rota dos próximos óscares.
Em menos de 20 minutos, ficamos a saber tudo o que precisamos. Kumail divide-se entre o palco e o Uber que conduz, e conhece Emily (Zoe Kazan) numa one-night stand que não demora a transformar-se. Evoluindo para a necessidade de ver as reacções dela a ver um dos filmes preferidos dele, em vez dele ver o filme, ou para o drama de ter que sair de casa para que o outro esteja à vontade na casa de banho. Quem nunca?! O problema? A tradicional e religiosa família muçulmana de Kumail, que se multiplica a impingir-lhe infinitas mulheres paquistanesas.
No primeiro ato, “Amor de Improviso” é o tradicional Boy (Kumail) meets Girl (Emily). Só que de repente, deixa de haver Emily, estando brutalmente presente sem o estar. E é nessa fuga a convenções que a coisa se torna especial. Curioso num filme sobre a relação de um casal, as principais forças estarem no tempo que Kumail passa a conhecer os pais dela e à mesa com os seus.
Na análise ao filme de Michael Showalter – um realizador condenado a surgir na sombra por se tratar de uma produção Apatow, que tem tanto de Kumail e Emily – podem-se identificar quatro espaços-chave. Elementos cénicos que agregam tudo o que o filme tem de bom. O palco, o quarto, a sala de jantar dos pais e o hospital. Quatro conquistas para o protagonista. Em palco, um comediante em busca da aprovação do seu público e a tentar dar o salto. No quarto, na intimidade com Emily, numa exposição honesta e verosímil sobre os primeiros tempos de relação de qualquer casal.
Mas o que realmente importa, passa-se no choque de gerações. No hospital, a conquistar os pais de Emily (Holly Hunter e Ray Romano estão incríveis), tornando-se a relação séria com eles e não com ela; e à mesa a conquistar um lugar na família à prova de inflexibilidades tradicionais e uma fé obrigada e não sentida.
A reflexão sobre religião – todo o filme é, aliás, uma quebra de tradições ou bons costumes – é provavelmente o traço mais marcante e que confere mais personalidade a um forte candidato a surgir nas categorias de melhor filme, melhor argumento original e quiçá melhor atriz secundária (Hunter). Pela capacidade que tem de nos oferecer um protagonista para quem as regras não fazem sentido e que precisa de perceber sozinho aquilo em que acredita. Ser livre para pensar e acreditar, ser livre para ser, e não apenas uma reza mentirosa na cave.
“Amor de Improviso” exige de Kumail Nanjiani um nível porventura nunca antes exibido pelo ator de 39 anos. A química com Zoe Kazan (um íman de atenção, a quem bastava o sorriso no último plano para justificar a sua presença) é instantânea e nunca parece forçada, e os secundários Holly Hunter e Ray Romano elevam a fasquia a nível de interpretação.
Escrever e realizar uma boa comédia romântica é difícil. Geralmente, é obedecer a um conjunto de convenções. É flutuar entre géneros e energias, enganando um espectador que quer ser enganado. E por fim confortado. Para cada trezentos filmes de sábado à tarde há um “Annie Hall”. “Amor de Improviso” não voa assim tão alto, mas é um dos bons filmes de 2017.
O humor é brusco e direto, coadunante com toda a abordagem narrativa. E se dúvidas tínhamos, “Amor de Improviso” prova que, embora com alguns ingredientes extra, a realidade continua a ser o melhor alimento da imaginação e da criatividade. A realidade que tanto pode ser um ataque de nervos de quem quer um hambúrguer com quatro fatias de queijo, duas pessoas entupidas em junk food numa noitada a lembrar histórias do passado, ou um pai que se despede para sempre do seu filho, mas pede-lhe que envie uma mensagem quando chegar.
Trailer | “Amor de Improviso” está a caminho dos óscares
Já foste ver “Amor de Improviso” ao cinema? Se queres um filme leve mas personalidade, a história de Kumail Nanjiani e Emily V. Gordon é o que procuras.
Amor de Improviso
Movie title: Amor de Improviso
Movie description: Um caso de uma noite entre o comediante paquistanês Kumail e Emily torna-se algo mais. Quando Emily é internada, Kumail vê-se forçado a ultrapassar a crise com os pais dela, que não conhecia até então, ao mesmo tempo que enfrenta a pressão dos seus pais para casar com uma muçulmana.
Director(s): Michael Showalter
Actor(s): Kumail Nanjiani, Zoe Kazan, Holly Hunter, Ray Romano
Genre: Comédia, Romance
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Miguel Pontares - 78
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Daniel Rodrigues - 60
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Cláudio Alves - 75
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Filipa Machado - 60
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Maggie Silva - 85
CONCLUSÃO
Amor de Improviso flutua entre géneros e energias, afirmando-se como bastante mais do que o rótulo de comédia romântica. É um dos bons filmes de 2017, pela camada de multiculturalidade que incorpora e pela reflexão que faz de tradições e dogmas.
O MELHOR: O filme é todo ele uma quebra de tradições e bons costumes. O humor é brusco, direto e eficaz. Holly Hunter e Ray Romano elevam a fasquia a nível de interpretação. A ligação entre Kumail Nanjiani e Zoe Kazan é instantânea e nunca parece forçada.
O PIOR: O argumento é sólido de uma ponta à outra, mas o último ato incorpora um certo impasse ou estranheza, consequências involuntárias do facto da relação de Kumail e Emily quebrar cedo e desenvolver-se sem ela estar (para nós) presente.