"Pinóquio" | © NOS Audiovisuais

Pinóquio, em análise | Melhores Figurinos e Maquilhagem

Pinóquio” é a mais recente adaptação ao cinema desse conto oitocentista. O realizador italiano Matteo Garrone concebeu uma visão horrorífica da história, com figurinos e maquilhagens nomeados para os Óscares.

Contos-de-fadas são qual maçã reluzente. A pele é escarlate e sumarenta, puxa pela fome, seduz a língua. Contudo, quando o dente finca sua carne, quando a pele é perfurada e o sumo chega ao lábio, vem consigo o sabor da podridão. Por dentro está morta, decomposta, o cadáver de uma sobremesa que ainda se finge deliciosa. Também as histórias de crianças, essas narrativas passadas de geração a geração até algum escritor intrépido as capturar, aparentam benignidade. Então, o interior vil revela-se, a feiura interior tão estonteante e visceral como a beleza da superfície.

A história de Pinóquio, clássico da literatura italiana, também assim é. No seu caso, trata-se de uma questão de fachada essencial e legado histórico. É certo que a obra do escritor Carlo Collodi não finge ser inocente ou necessariamente um trabalho para entreter mentes tenras. Só que não foi a página que pintou um verniz de inocência sobre o livro. Foi o cinema, o da Disney e tantas outras, que limou as arestas vivas que Collodi compôs. De tal modo que a impressão que persiste é até mais polida que o filme de animação, mais luminosa e descomplicadamente ingénua.

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Face a esta metamorfose, do livro para o ecrã para a memória coletiva, Matteo Garrone propõe um regresso às origens do conto, ao tom degradado da maçã podre. O realizador italiano, que alcançou proeminência internacional com “Gomorra”, já antes se aventurou pelo mundo da fantasia dita infantil. Em “O Conto dos Contes”, o cineasta inspirou-se nos escritos de Giambattista Basile para propor um pesadelo vestido como conto-de-fadas. Ao invés de desviar o olhar do potencial grotesco da trama, ele assumiu esse elemento, celebrou-o até. O resultado é uma espécie de realismo distorcido, uma alucinação febril que tanto tem um pé no mundo da carne e outro no sonho.

“Pinóquio” dá continuação a essa pesquisa e, pelo caminho, oferece o presente da redenção, tanto ao texto como a um dos seus atores. Recapitulando para quem não sabe, o conto de Collodi centra-se nas mirabolantes aventuras de um menino de madeira, uma marioneta viva que serve de filho querido ao carpinteiro Geppetto. O homem tenta mandar a criança sobrenatural para a escola, tenta ensiná-lo responsabilidade, mas os vícios do mundo são demasiada tentação para o nado esculpido. Sem sorte nem bom-senso, Pinóquio é aprisionado e ludibriado, ele é tornado em burro escravo, em comida de baleia e refugia-se com uma fada azul.

Pelo meio, há um conselheiro Grilo que o próprio menino espezinha até à morte, uma árvore milagreira, um teatro de fantoches e muito mais. Todas essas visões são materializadas no ecrã pela mão de Garrone e uma extraordinária equipa de artesãos e criativos. O próprio Pinóquio é um milagre ímpio de artificio cinematográfico, uma figura menina cuja pele é carvalho massacrado pelo cinzel. Sua existência é um paradoxo desconcertante, madeira rígida que se contorce, que se estica, com a flexibilidade do músculo, imobilidade feita móvel.

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E essa nem é a figura mais marcante ou memorável. Pensamos, por exemplo, na mulher caracol, gigantesco invertebrado que vagueia pelo espaço como um glacial atravessa o mar. Há a fada azul, primeiro pequena e depois adulta, que parece um cadáver animado, tez pálida, cabelo empoado, maquilhagem feita para o caixão mais do que para a vida. O gato e a raposa assustam, faces moldadas pela expressão salaz, tão animais como humanas. Um homem-atum é o grito de Münch a emergir de um corpo aquático, os miúdos tornados asnos são terror corporal saído diretamente do cinema de Cronenberg e outros que tais.

Corre-se o perigo de cair na descrição enaltecida e abandonar por completo o sentido crítico. Em termos visuais, este “Pinóquio” de Garrone é um triunfo sem mácula. A recusa do efeito digital barato em prol de mecanismos práticos, maquilhagem e cenários engenhosos, confere uma fisicalidade extrema ao filme. Sentimos que conseguimos tocar naquelas paredes palimpsésticas, sentir a ruga húmida do júri macaco, respirar o ar daqueles lares flageladas pela pobreza. É cinema visceral num paradigma fantasioso. Nesse aspeto, Garrone e companhia merecem muitas salvas de palmas.

Dito isso, a lealdade para com o texto de Collodi tem os seus problemas. A estrutura episódica que funciona em livro, não tem tão bom efeito quando é dramatizada. Sentimos que o filme está sempre aos solavancos, soluçando como um carro que teima em pegar. Além disso, a propositada indefinição do protagonista, quando combinada com uma performance insegura, resulta na alienação do espetador. Há sempre uma parede de vidro entre audiência e figuras dramáticas. Quase é possível relacionarmo-nos mais emocionalmente com o espaço do que com seus habitantes. Ao fim do dia, o mecanismo literário nem sempre se traduz para o cinema. Talvez “Pinóquio”, o clássico de Collodi, seja assim.

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É difícil imaginar uma adaptação mais virtuosa ou leal. O filme da Disney pode trair a intenção do escritor, mas pelo menos prima enquanto objeto fílmico. Em todo o caso, ambas as versões são melhores que aquele infame desastre que Roberto Benigni estreou em 2002. Antes, ele foi Pinóquio, agora, em frente à câmara de Garrone, é Gepetto. Comove ver como o cineasta deu oportunidade ao comediante para vingar, para compensar o desastre passado, quiçá se redimir. Como o carpinteiro que esculpe o próprio filho, ele é o eterno palhaço que chora, uma explosão de joie de vivre extravasada pela melancolia. Quando Geppetto está em cena, este “Pinóquio” até ganha pulso. De resto, não tem batimentos cardíacos.

Pinóquio, em análise
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Movie title: Pinocchio

Date published: 3 de April de 2021

Director(s): Matteo Garrone

Actor(s): Federico Ielapi, Roberto Benigni, Rocco Papaleo, Marine Vacht, Gigi Proietti, Massimo Ceccherini, Maria Pia Timo, Davide Marotta, Paolo Graziosi, Massimiliano Gallo, Gianfranco Gallo, Enzo Vetrano

Genre: Drama, Fantasia, 2019, 125 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Como que abrindo um buraco na cabeça do sonhador, Matteo Garrone expõe e derrama o líquido negro do pesadelo, a matéria prima do horror, do fascínio amedrontado. O seu “Pinóquio” é uma experiência de textura e cor, jogo de tatilidade acima do jogo narrativo. Como história vacila, mas deleita enquanto exercício estético. As duas nomeações para os Óscares são mais que merecidas.

O MELHOR: Os cenários delapidados de Dimitri Capuani, os figurinos texturados de Massimo Cantini Parrini, a maquilhagem monstruosa de Mark Coulier.

O PIOR: A indefinição do protagonista, a estrutura soluçada, a frieza do moralismo oitocentista.

CA

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