"O Estranho" | © Filmes de Abril

Queer Lisboa ’23 | O Estranho, a Crítica

Um aeroporto brasileiro serve como ponto de partida para um devaneio de cinema arqueológico em “O Estranho,” novo filme de Flora Dias e Juruna Mallon. A equipa de cineastas estreou a sua fita na Berlinale deste ano, onde competiram pelo prémio Teddy, destinado a reconhecer trabalhos com temáticas queer. A sua viagem pelo circuito dos festivais continua na capital portuguesa, onde integra a Competição Queer Art do 27º Queer Lisboa.

Tudo começa na terra, uma natureza indomada com selva em todas as direções que a câmara vê. O ano é 1590 e o sol pinta matizes de luz doirada sobre o caos verdejante. Uma figura de aspeto masculino emerge das trevas, um túnel de pedra e olha em seu redor. O ano é 1932 e duas mulheres, quiçá mãe e filha, repousam na paisagem esmeralda. Algo é enterrado, talvez um segredo. O ano é 1893 e cavaleiros atravessam o terreno montados nos seus cavalos brancos. O ano é 1677 e uma mulher senta-se em rochedos, observando algo que não vemos. O ano é 1492 e Eva no seu Éden está prestes a conhecer o flagelo colonial.

O ano é o nosso e a paisagem dos Guarulhos é agora um aeroporto cujo nome popular conta uma epopeia de invasão e conquista, extermínio, apropriação da terra, transformação, construção e perda também. Com este remoinho de tempos trocados, os realizadores Flora Dias e Juruna Mallon introduzem o espetador à sua mais recente proeza, “O Estranho,” perdida algures entre o discurso em nome da descolonização e o cinema em nome da poesia. Trata-se de um exercício narrativo às margens do experimental, ao qual não falta ambição, patente desde esse começo através dos séculos e da História de um Brasil que já foi e continua a ser, que é e não é.

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De facto, o prólogo, por si só, transmite as grandes ideias do filme, insinuando um processo arqueológico de descoberta sobre as fundações indígenas da terra sobre a qual se ergue o Aeroporto Internacional de São Paulo. Uma audiência pouco generosa poderia até afirmar que o que se segue em “O Estranho” é meio desnecessário. Contudo, uma análise mais benevolente atestaria como os realizadores propõem uma ideia em abstração e depois a colocam em prática, fiando a tapeçaria concetual através de um conto com personagens e observação mundana. É ele o quotidiano de Alê, uma de 35,000 pessoas a trabalhar no aeroporto.

Enquanto operadora de pista, primeiro vislumbramos a protagonista no seu lavoro habitual, levando bagagens do avião para os tapetes rolantes que as devolverão aos donos. Seguimo-la no dia-a-dia corriqueiro, entre amigos e colegas, incluindo Sílvia, uma esteticista com quem Alê partilha o corpo e dá prazer. Quiçá, o amor floresce entre as duas, mas há laços que se sobrepõem ao romance. Para Sílvia, o futuro é incerto e o compromisso algo a que ela se esquiva por conversas, sorrisos soslaios. Para Alê, a redescoberta daquilo que os Guarulhos já foram toma prioridade, nem que seja somente ao nível do espírito.

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A memória são raízes que crescem para dentro da terra, infiltrando-se além da superfície alcatroada para recordar a mata entretanto desbravada e por muitos esquecida. Ela chega ao passado através de objetos perdidos no aeroporto, fragmentos que podem ser só pedras ou antiguidades, conversa com a família e o sonho da infância. Numa cena memorável, Alê brinca com Sílvia além da vedação do aeroporto e reconstrói um bairro antigo no novo vazio da paisagem. Noutras ocasiões, ela lembra florestas destruídas através de fotos, ou fala do passado de pedras na sua coleção. É uma mulher ligada sempre ao ontem em mais modos que um.

Afinal, a atriz Larissa Siqueira não só se assume Alê como também dá vida aquelas figuras misteriosas do prólogo. Isso estabelece logo a trabalhadora do aeroporto como uma mulher a viver através do tempo, uma sinédoque de todo um povo marcado por Histórias violentas. Ela é o mais recente capítulo no seu épico, mas está longe de ser o último. Sua figura dá uma continuidade ao trabalho de “O Estranho,” estendendo o argumento simbólico da fita além dos limites da sua narrativa, por muito abrangente que ela possa ser em certas passagens. Há infinitos para os dois lados do filme, passado e futuro, e só conseguimos andar para a frente se olharmos para trás.

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É evidente, contudo, que o verdadeiro protagonista de “O Estranho” não pode ser uma singela figura humana. Alê representa muito, mas ainda mais significa a terra a que ela chama casa. Os Guarulhos dominam a fita e reclamam espaço para cantar o seu triste fado, a tragédia do Brasil cuja génese foi um fim. Atente o lirismo que possui a câmara quando esta pode desviar o olhar da modernidade e considerar o milagre da Natureza. Repare-se no trabalho de som e montagem, criando transições poderosas entre o progresso ereto em cimento e a liberdade disforme do arvoredo – essa vontade de furar a pista como aquela erva daninha que, com força, rebenta com o passeio.

Nós somos só açúcar e fosfato, diz uma das personagens. Nós somos da terra, diz uma mulher indígena entrevistada quando “O Estranho” se metamorfoseia num híbrido entre ficção e documentário, talvez uma não-ficção fingida em jeito de filme dentro do filme. Há, nestas palavras uma poderosa noção do ser humano enquanto algo material, unido ao mato dos seus ancestrais. Mas também é imaterial, no sentido da memória coletiva e do misticismo. Essas contradições são necessárias para entender o presente brasileiro, algo que “O Estranho“ reconhece sem necessariamente reconciliar todos os pontos levantados. Trata-se de um daqueles filmes que faz perguntas sem oferecer respostas, abrindo os braços à complexidade dos temas enquanto renuncia a arrogância de conclusões fechadas.




O Estranho, em análise
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Movie title: O Estranho

Date published: 27 de September de 2023

Director(s): Flora Dias, Juruna Mallon,

Actor(s): Larissa Siqueira, Patrícia Saravy, Jorge Neto, Rômulo Braga, Helena Albergaria, Ântonia Franco, Thiago Calixto, Laysa Costa

Genre: Drama, 2023, 105 min.

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

“O Estranho” foi aquele que entrou numa terra bravia, onde se vivia em comunhão com a natureza, e daí concebeu um império de exploração cujo progresso falseado perdura até aos dias de hoje. Quiçá se faz aqui uma leitura demasiado idealizada do passado indígena do Brasil, mas a ideia funciona enquanto sustentação de um argumento proposto pelo novo filme de Flora Dias e Juruna Mallon. Dançando rente ao precipício do experimental, a obra fascina e frustra, força o espetador a considerar ideias complicadas sem o guiar a nenhuma conclusão. Assim se evita o didatismo e o sermão. Assim também se evita a forma estável da fita.

O MELHOR: As ideias sintetizadas na primeira passagem. Há ainda que aplaudir a cena de rito sob luz colorida, onde o filme parece oferecer uma via para expiação, luto e luta, talvez até uma cura para as maladias de espírito dos descendentes daqueles a quem os Guarulhos foram roubados.

O PIOR: Os ritmos amorfos vão aborrecer muita gente e há que apontar o dedo também à fotografia digital que, por vezes, assombra com a sua beleza, mas que, na maioria do filme, tende a drenar esplendor à paisagem natural.

CA

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