"Shall I Compare You to a Summer's Day?" | © Amerikafilm

Queer Lisboa ’23 | Shall I Compare You to a Summer’s Day?, a Crítica

Qual Xerazade para um contexto contemporâneo e decididamente queer, o realizador egípcio Mohammad Shawky Hassan tornou as suas desventuras sexuais numas “Mil e Uma Noites” para o grande ecrã. “Shall I Compare You to a Summer’s Day?” é um trabalho algures entre o diário e o experimental que agora integra a Competição Queer Art na 27ª edição do Queer Lisboa.

Se é que existe arte universal, ela tem que nascer de um berço de especificidades, de experiências singulares, fortemente ligadas às minúcias de uma realidade vivida. Tal ordem desordenada soa a paradoxo, mas não deixa, por isso, de ser verdade. Veja-se o formato do diário transformado em espetáculo, o privado feito público, onde os segredos mais íntimos são oferecidos à audiência. Por vezes, são esses trabalhos que mais mexem com o espetador e provocam o milagre do reconhecimento, mesmo quando ele se descobre entre as ranhuras da apresentação, nos seus recantos mais profundos, seu âmago.

Todo este palavreado serve para introduzir o mais recente projeto de Mohammad Shawky Hassan, um cineasta que nos mostra um Egito muito diferente da ideia geral sobre essa nação. Fá-lo, iluminando a vivência da comunidade queer, especialmente as ligações entre homens que têm sexo com homens, que assim forjam relações e procuram o amor no ressalvo da paixão. Trata-se do mundo habitado pelo próprio artista que, sem vergonha ou pudor, se expõe diante da própria câmara. No entanto, nunca se resigna aos códigos do documentário corriqueiro ou um qualquer realismo dramático.

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© Amerikafilm

Para contar a sua história, Hassan recorre ao artifício desmesurado, conjugando os desígnios do cinema a modos de encontrar uma depuração na qual se transcende o real. Sua oeuvre é mais verdadeira que a verdade. Pelo menos, assim é “Shall I Compare You to a Summer’s Day?,” essa última aposta com cheiros de “Mil e Uma Noites.” Para o efeito, realizador assume-se enquanto mestre de cerimónias e Xerazade viril do século XXI – uma versão mais convencional dela aparece também, há que dizer. Nós, por conseguinte, estamos no lugar do rei a quem seus contos são recontados, ouvidos atentos e olhos deleitados.

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Hassan não faz o exercício sozinho, é claro, e nem só pelo meio da narração. Muito do filme é, na verdade, uma colagem de entrevistas encenadas. São elas feitas a parceiros sexuais, namorados e amantes, alguma doce distração descoberta no clube noturno ou uma união mais prolongada e complicada. Também se encontram amantes de amantes, uma ramificação de desejo cujas raízes formam os traços num retrato coletivo da comunidade gay do mundo Árabe, mostrada pelo prisma da liberação sexual ao invés da sua opressão. De facto, Hassan faz proveito da música popular do Egito a belo prazer, apropriando-se de hinos hétero para cantar a epopeia queer.

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Outros elementos da cultura tradicional surgem pelo meio, subvertidos num esquema cinematográfico que não podia ser mais ousado. Dito isso, a liberação sexual e a celebração da mesma não invalidam o surgimento de conflitos nessas teias de luxúria que a fita foca. O elemento central de uma relação a três, quiçá quatro, pondera sobre as tensões inerentes a uma cena em que a monogamia é tantas vezes rejeitada em prol de relações poli ou abertas, mesmo quando a gente envolvida pode não estar preparada para tal. Há muito ressentimento nas passagens, mas também há a franqueza e júbilo na vulnerabilidade.

Contra isso, ou em complemento, justapõe-se um folclore repensado e erotizado, fantasias sexuais atirando-se de cabeça para as profundezas do cliché kitsch, e um monólogo sentido para com um amor que já morreu. Há ainda que considerar a estética subjacente, sendo “Shall I Compare You to a Summer’s Day?” uma assemblage de episódios fechados em estúdio com green screen e cenografias caricatas. Sente-se uma aliança entre o artesanal e o digital, um pouco como o cinema do mestre japonês Nobuhiko Obayashi, com o lado rudimentar dos efeitos low-fi exaltada ao invés de escondido. Para quê ter vergonha dos recursos limitados? Mais vale festejar.

O resultado de tudo isto é uma experiência deliciosa, extremamente pessoal e, por isso, universal. O trabalho é assim capaz de vingar, tomando de assalto a imaginação do espetador apesar da sua simplicidade e uma duração tão diminuta que chamar-lhe uma longa-metragem é generoso – enfim, o tamanho não é tudo.




Shall I Compare You to a Summer's Day?, em análise
shall i compare you to a summer's day? critica queerlisboa

Movie title: Shall I Compare You to a Summer's Day?

Date published: 27 de September de 2023

Director(s): Mohammad Shawky Hassan

Actor(s): Donia Massoud, Ahmen El Gendy, Nadim Bahsoun, Hassan Dib, Ahmed Awadalla, Richard Gabriel Gersch, Kenton Türk, Gabriele Marra, Erik Cataldo, Agatino Camarda, Carlos Vasquez, Ronni Maciel, Albert Janzen

Genre: Documentário, Drama, Musical, Experimental, 2022, 66 min.

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Em jeito de diário projetado no grande ecrã, ruminações e coscuvilhices trocadas entre parceiros sexuais, “Shall I Compare You to a Summer’s Day?” é um triunfo de ousadia queer no contexto do mundo árabe. Entre tradição egípcia e libanesa, o realizador Mohammad Shawky Hassan invoca um coro de amantes gay para contar a sua versão pessoal das “Mil e Uma Noites,” com interlúdios musicais e tudo o mais.

O MELHOR: A franqueza do exercício e seu aspeto brincalhão, pronto a subverter cultura popular e tradição ancestral.

O PIOR: Trabalhos como este têm sempre uma natureza solipsista. Infelizmente, os parcos 66 minutos de duração não permitem ao projeto superar essas acusações. É pena, pois sentimos que havia aqui pano para mangas para algo maior, ainda mais ambicioso e, quiçá, mais espetacular.

CA

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