"Passages" | © MUBI

Queer Lisboa ’23 | Passages, a Crítica

Ira Sachs, realizador de filmes como “Love Is Strange” e “Homenzinhos,” regressa à ribalta com “Passages.” O drama tem vindo a causar furor desde a estreia no Festival de Sundance, com o seu conteúdo sexual a ser alvo de muita polémica – nos EUA, a fita chegou às salas de cinema sem classificação por isso mesmo. Com Franz Rogowski, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos nos papéis principais, este fenómeno chega ao 27º Queer Lisboa em Sessão Especial. Mais tarde, deverá ficar acessível ao público português na plataforma MUBI.

Algures na noite parisiense, há um filme a ser rodado. O alemão Tomas é o realizador encarregue do plateau, frustrado e irrascível, tentando transmitir as suas ideias a um elenco de atores e figurantes. Muito ele fala de divertimento e propósito, do hedonismo da cena e como a gente diante da câmara há que transmitir essa ideia de um antro de desejo, folia e euforia. Contudo, nada parece estar bem para o seu olho crítico. Em total acesso de raiva, ele até pergunta ao seu ator principal se este é capaz de descer as escadas como um ser humano. Numa só cena, Ira Sachs e Franz Rogowski esboçam um protagonista que parece ter fugido de alguma narrativa de Fassbinder.

A crueldade do artista é apenas um apontamento, sendo “Passages” sobre a sua vida privada, fora da esfera pública e profissional. Não que a nossa perceção inicial de Tomas se altere muito. De facto, com cada novo detalhe que conhecemos, mais o homem parece perdido numa estagnação egoísta, incapaz de mudar, de se adaptar ou considerar o ponto-de-vista de outro que não ele mesmo. Nem o marido, um artista inglês chamado Martin, está a salvo desses narcisismos que o realizador personifica. Basta uma conversa passageira para entendermos como a relação dos dois é uma conflagração de transigências e ressentimentos antigos, sacrifícios unilaterais até onde a vista alcança.

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Dito isso, todas as provações passadas não se comparam ao flagelo que aí vem. Na noite em que se celebra o fim das filmagens, Tomas deixa que Martin volte a casa sozinho e decide seguir uma amiga até à cama. Ela é Agathe, professora sua conhecida com quem o cineasta inicia um caso tórrido e muito mal-escondido do marido. Acompanhamos o trio ao longo de vários meses, talvez até alguns anos, caindo em amores e temores, algum ódio e todo um antro de destruição em volta de Tomas. A primeira análise, ele é como um buraco negro, autêntico vórtice que puxa aqueles que lhe são mais próximos para um oblívio obscuro.

Contudo, outras leituras são possíveis, especialmente quando, chegado o fim da fita, essa força gravitacional se abate sobre si mesma. Talvez Tomas seja o espaço de passagem na vida dos outros, algo a ser esquecido ou recordado com um tremor do coração dorido. Não que ele seja um simples desastre e nada mais. Há prazer entre o horror do seu afeto, com Franz Rogowski a dar-lhe vida num sopro de carisma sem igual. Sentimos magnetismo animal e muitas hormonas no ar, tantas que quase conseguimos saborear a luxúria que emana do ecrã. É preciso ser-se uma verdadeira estrela para que os demais tolerem tais comportamentos e assim é Tomas.




No entanto, quando consideramos as semelhanças entre a personagem e seu criador, é surpreendente quanto Sachs está disposto a pintar Tomas como um monstro. Como fãs do realizador poderão saber, ele vive em Nova Iorque com o marido e, na casa ao lado, está a realizadora Kirsten Johnson com quem Sachs teve gémeos. O trio aparenta ser uma família feliz, mas “Passages” sugere a versão pesadelo do seu estilo de vida, quando a desonestidade patológica de um artista, sua fome insaciável, seu desejo imparável, destroem tudo e todos no seu caminho. Mesmo com Rogowski e sua formosa figura, há um tenor de autorretrato demonizado que surpreende e choca.

Longe de limarem as arestas vivas do protagonista, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos afiam a realidade de viver com alguém como Tomas, intoxicados pela sua atenção ao mesmo tempo que odeiam o efeito que tem sobre si, seus espíritos e imagem própria. Eles respondem à provocação do protagonista com multidimensionalidade absoluta, cada escolha pintada em faces expressivas e nos seus corpos, também. De facto, as cenas de sexo são alguns dos pontos de maior profundidade dramática em “Passages,” superando diálogos e exposição com tudo o que nos revelam sobre as figuras em cena.

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O primeiro encontro entre Agathe e Tomas é a faísca que acende uma bomba, transpirando uma renegação da razão e do razoável com consequências terríveis. Mais tarde, a reunião de Tomas e Martin após mais uma separação resulta num espetáculo de prolongada carnalidade. O modo como os corpos se reconhecem, como mãos exploram orifícios, como se dá e tira, as dimensões da generosidade sexual ou o egoísmo contrastante – tudo isso está nessa dança despida, filmada num plano sem cortes cuja natureza explícita quase nos faz questionar como é que Sachs e companhia conseguiram manter o sexo simulado.

Não que o texto conversacional seja menos forte ou que as personagens tenham menos interesse quando estão vestidas. Aliás, os figurinos desenhados por Khadija Zeggaï são parte essencial da mise-en-scène, trazendo apontamentos de cor, padrão, fantasia e grande atrevimento a uma linguagem visual definida pelo realismo doméstico. Por seu lado, o argumento escrito por Sachs, Mauriciso Zacharias e Arlette Langmann, sabe quando interromper os silêncios pesados e cortar a tensão com palavras bem escolhidas. As cenas finais entre Tomas e os dois alvos do seu afeto venenoso são exemplos arrebatadores, com Whishaw, em particular, capaz de nos partir o coração com a fala bem articulada. Que assombro, que desejo, que paixão e destruição, que dor!

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Passages, em análise
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Movie title: Passages

Date published: 30 de September de 2023

Director(s): Ira Sachs

Actor(s): Franz Rogowski, Ben Whishaw, Adèle Exarchopoulos, Erwan Kepoa Falé, Arcadi Radeff, Léa Boubill, Théo Cholbi, William Nadylam, Tony Daoud, Sarah Lisbonis, Anton Salachas, Thibaut Carterot, Theo Gabilloux, Caroline Chaniolleau

Genre: Drama, Romance, 2023, 91 min.

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Ira Sachs arrisca o autorretrato numa pintura de amor tóxico, um triângulo destinado à dor e destruição onde o egoísmo de um é suficiente para condenar o coletivo à infelicidade. “Passages” não tem vergonha das realidades adultas que retrata, nem tenta esconder quanto aquilo que nos magoa pode também ser sedutor. Trata-se de obra matura, apresentada com estilo elegante e um trio de prestações formidáveis no olho da tempestade.

O MELHOR: A franqueza dura de Exarchopoulos, a ousadia erótica de Rogowski, a vulnerabilidade sentida de Whishaw. Isso e os figurinos fenomenais com que todo o elenco desfila perante a câmara.

O PIOR: Tanto o argumento se foca nas personagens principais que algumas figuras transeuntes se perdem e nos parecem indefinidas demais. O escritor interpretado por Erwan Kepoa Falé é o exemplo mais flagrante.

CA

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