Queer Lisboa ’25 | No Pride in Genocide
Este ano, em novas edições do Queer Lisboa e do Queer Porto, a secção dedicada ao cinema de resistência regressa depois da sua inauguração em 2024. A Palestina esteve em foco, com um programa de “Queer Cinema for Palestine”, onde oito curtas-metragens de autores palestinianos ou da diáspora foram reunidos para sessões poderosas tanto ao nível da arte como da sensibilização ativista. Do experimental à narrativa indie, desde o documentário audaz até poemas tonais, estes filmes vieram ainda acompanhados por um apelo à causa caridosa e contribuição para a organização humanitária Seeds of Hope.
Já voltarei a falar dessa oportunidade para doar, mas, primeiro, há que abordar os filmes, não fosse esta uma cobertura de festival de cinema. Todos eles se confrontam com o problema patente na sua mesma programação, um afiliar tão forte ao ativismo político que se torna difícil considerar os seus méritos estéticos ou formais ou narrativos quando o caso justifica. Tanto assim é que uma pessoa fica na dúvida se as obras sobreviveriam a essa separação de intenções e produto final ou se, em exemplos tão declarados de cinema de resistência, tais distinções fazem sentido. No que me compete, darei o meu melhor para andar na corda bamba sem trair fitas ou artistas.
A sessão começa com “Abgad Hawaz” de Robin Riad, um laivo de dois minutos onde a cineasta baseada no Canadá celebra a beleza da língua árabe através da sua escrita. Em certa medida, trata-se de uma manifestação contra o preconceito islamofóbico. Por outro lado, existe um teste das barreiras na prática artística entre o cinema e a caligrafia, imprimindo as letras a laser na banda sonora de película de 16 mm para que o próprio projetor as pronuncie na sua própria voz. Longe de uma lição, trata-se de uma brincadeira onde Riad parece quase questionar a capacidade comunicativa do cinema, depurando-o à sua essência mecânica.
O jogo com a materialidade deste meio continua em “Out of Gaza”, um projeto corealizado por Jannis Osterburg e Seza Tiyara Selen na Alemanha, que traz um gosto de animação stop-motion a esta galeria de curtas-metragens. Em jeito crítico, a base para este trabalho fez-se com peças Lego no lugar dos protagonistas, jovens palestinianos a tentar fugir de Gaza para um Ocidente onde sonham encontrar paz e um fim para sua dor sem fim. O uso dos brinquedos chama logo a atenção, ecoando os números astronómicos de crianças que já morreram nos ataques genocidas de Israel contra o povo palestiniano.
Filmes contra genocídio, festival contra pinkwashing.
Mas, acima dessa ligação entre a plasticidade dos materiais e sua leitura infantil, também existe aqui um gesto a apontar para a cumplicidade do Ocidente nos crimes de guerra que a ocupação israelita tem levado a cabo à revelia da lei internacional. Porque o Lego é um produto tão impossível de separar da tradição europeia, sua génese na Dinamarca e consequente popularização, até chegar à fama mundial e a Hollywood também. O facto de o filme ser falado em alemão é outro reforço dessa ideia de que o que está a acontecer em Gaza se reflete no mundo inteiro, que todos somos responsáveis e temos culpa no cartório, até se nos imaginarmos neutros.
Vindo diretamente da Palestina, “Blood Like Water” é apresentado como o mais tradicional destes exercícios, afirmando ainda ser baseado em várias histórias reais. Trata-se de um dos trabalhos mais declaradamente queer da seleção, relatando a noite em que Shado regressa a casa e se vê preso entre a espada e a parede. O IDF quer informações que colocarão um membro da resistência em risco, fazendo chantagem ao jovem com a ameaça de divulgar um vídeo dele a ter sexo com homens. Dima Hamdan situa todo o drama no foro doméstico, tratando a premissa como uma espécie de panela de pressão, tensões ao rubro e prestes a explodir.
Há um certo convencionalismo que tira valor ao filme, pois a sua execução não consegue sustentar a abordagem clássica. Por outro lado, as deficiências formais evidenciam a qualidade dos atores. Eles estão encarregados de dramatizar um cruzamento desconfortável entre preconceitos na comunidade nativa e a necessidade de solidariedade e união contra o inimigo colonial. Em termos temáticos, o modo como as forças militares israelitas usam a sexualidade queer como arma ressoa pela programação do Queer Lisboa, um manifesto aceso contra o pinkwashing levado a cabo pelo estado que há 77 anos é o maior carrasco de palestinianos LGBTQ+.
Se “Blood Like Water” representa o píncaro da convenção neste programa do Queer Lisboa, “a tangled web drowning in honey” será o oposto. O filme de Hannah Hull e Tara Hakim é um sonho experimental em prol do amor próprio, com foco nas texturas e no olhar apreciativo sobre o próprio. Entre a meditação e a poesia visual, é daquelas propostas que não agradará a gregos e troianos, arriscando a desfragmentação de significados que surge no limiar do abstrato. Rendam-se à sua magia e talvez sintam a relação complicada de um corpo consigo mesmo, desejos e sonhos em conflito com os limites da carne e do mundo onde vivemos.
Como que num pingue-pongue entre narrativa e cinema experimental, “Aliens in Beirut” afirma-se como a tragédia mais evocativa desta série “No Pride in Genocide.” O filme de Raghed Charabaty considera a explosão que abalou o porto de Beirute em 2020, vendo-a como o ponto final num amor passageiro entre o próprio cineasta e outro homem queer da diáspora palestiniana que, há décadas, encontra refúgio no Líbano. No mesmo movimento de mergulho nas águas do Mediterrâneo, também o filme mergulha nas possibilidades estéticas e sentimentais de um registo impressionista, capturando as sensações daquele amor e daquela perda, mais do que a forma tradicional de um romance.
É impressionante como Charabaty consegue condensar toda esta narrativa em 17 minutos, incluindo um trejeito de carnalidade em contradição explícita à vergonha que as personagens sentem ser-lhes exigida pela sociedade em redor. Interlúdios na varanda de um apartamento, esse limiar entre o espaço privado e público, conseguem ser especialmente tocantes, sugerindo uma liberdade com que estes homens jogam sem nunca conseguirem assegurar em plenitude. Ficam os prazeres e as folias, a paixão e a cor desse paraíso que encontraram um com o outro, por muito curto que esse idílio tenha sido antes do seu Éden rebentar em fogo, fumo e cinzas.
Em “Palecore”, Dana Dawud usa imagens de arquivo e vídeos postados nas redes sociais para esbater a barreira porosa entre passado e presente, desmentindo aquela fantasia sionista de que esta chacina de palestinianos só começou em resposta ao 7 de outubro. Sem cair no sermão, o filme apoia-se no choque visceral de ritmos incertos, o contraste entre o folclore em forma de dança e as canções de resistência, a rebelião das massas, o dia a dia em colisão com violências tão regularmente repetidas que se tornam mais uma rotina banal. Aqui temos um estupendo uso do cinema em seu estado mais puro – montagem acima de tudo – como forma de protesto.
“Don’t Take My Joy Away” regressa ao panorama dos refugiados palestinianos no Líbano, centrando a ação no campo de Chatila. Lá, o cineasta Omar Gabriel captura o elo entre dois rapazes forçados a fugir em nome da sobrevivência e da felicidade, da liberdade que custa tanto a assegurar e tão rapidamente se volta a perder. Entre ruínas e instantes de intimidade elétrica, o filme ecoa como uma lamentação que tanto tem de fúnebre como de poético. O sentimento de deslocação causado pela travessia do refugiado político é o alicerce de toda a tristeza aqui vista, dando um fundamento político a outro trabalho nas margens do impressionismo.
Há que ouvir as vozes de palestinianos LGBTQ+.
Por fim, Teyama Alkamli oferece-nos um estudo de personagem bem tradicional em “I Never Promised You a Jasmine Garden”, onde Tara fala ao telefone com a melhor amiga do outro lado do Atlântico. O filme insiste na especificidade da diáspora palestiniana em terras canadianas, um contexto gélido que parece refletir o conflito interior da protagonista. Afinal, Tara quer estar feliz pelas boas notícias da amiga e seu novo romance, mas o coração parte-se como o de tanta mulher queer que viveu na esperança de uma companheira hétero um dia se render de amores por si. Arrisca-se o cliché, mas há suficiente autenticidade em jogo para compensar tais fragilidades.
Tanto nesta sessão como noutros eventos do festival, estiveram presentes códigos QR para que as audiências pudessem contribuir para a caridade Seeds of Hope, inicialmente focada em projetos educativos na Palestina, mas cada vez mais direcionada para a distribuição de mantimentos à população vulnerável. Face à contínua agressão israelita, qualquer ajuda é bem-vinda, especialmente no que se refere ao apoio das crianças palestinianas que têm sido as vítimas mais numerosas deste genocídio. Entre os vários festivais de cinema em Portugal, o Queer Lisboa confirma aqui as suas convicções e valores.
Convém dizer que também foi exibida uma mensagem da “Cultura pela Palestina” no início de cada filme, transversal a todas as secções. A arte tem o dever de falar verdade quando o mundo insiste em tapar os ouvidos e fechar os olhos perante as atrocidades que acontecem. E, num panorama em que as forças de governos internacionais se recusam a agir, cabe aos cidadãos manifestar-se e exigir justiça. Tantas vezes olhamos para o passado e nos perguntamos como é que a gente da altura deixou horrores acontecer. Agora temos a chance de definir se, no futuro, seremos lembrados por semelhantes silêncios ou por ação. O Queer Lisboa vai à luta!
O programa “No Pride in Genocide” do movimento “Queer Cinema for Palestine” será exibido novamente no Queer Porto, a decorrer entre 4 e 8 de novembro.