©Alambique Filmes

Regresso a Seul, em análise

Park Ji-min protagoniza “Regresso a Seul”, a mais recente obra do cineasta Davy Chou (“Diamond Island”).

Regresso a Seul
©Alambique Filmes

O argumento de RETOUR À SÉOUL (REGRESSO A SEUL), 2022, realizado por Davy Chou, nascido em França mas filho de pais cambodjanos, inspira-se na singular experiência de vida de uma amiga do autor, Laure Badufle, com quem viajou para a Coreia do Sul, país onde ela nascera mas que não sentia como o dela. De facto, apenas com um ano de idade, Laure foi levada para a Europa depois de ser adoptada por um casal francês. Esta história, igual a muitas outras que aconteceram e continuam a acontecer por esse mundo fora, serviu de modelo para a composição da personagem ficcional de uma jovem a quem Davy Chou chamou Frédérique, ou simplesmente Freddie (papel assumido por uma artista plástica que nunca antes representara, Park Ji-min, e isso nota-se) que o realizador quis apresentar como uma espécie de réplica de Laure, a mulher agora adulta que regressa ao país de origem desenraizada dos seus valores culturais mas detentora de um espírito livre, um comportamento rebelde e um perfil psicológico cuja exuberância subjectiva se manifesta com alguma agressividade na relação com os coreanos com quem se cruza. Estamos aqui no domínio da personalidade de alguém que, apesar de dar ares de cosmopolita, mostra um estranho desinteresse pelos hábitos quotidianos dos seus interlocutores, o mesmo será dizer, pelo sentir das gentes inseridas na cultura local.

Lê Também:   Trabalhos de Casa, em análise

EU SOU FRANCESA! E QUEM ÉS TU, NINGUÉM?

De facto, na ausência de referências próximas ou confluentes das suas, ou seja, as europeias, Freddie encara a sua presença naquele país (onde se considera de forma narcisista como estrangeira) quase sempre a partir do interior de um círculo protector da sua identidade, num quadro de permanente interrogação sobre quem sou EU e quem és TU e, aqui e além, não esconde sequer uma irritante distância em relação ao modo de ser e estar do povo coreano. Nos primeiros minutos do filme nem sequer esboça um pequeno esforço para compreender a especificidade das suas idiossincrasias. Bem pelo contrário, face a um reparo de alguém a propósito de questões de etiqueta, feito com simpatia e compreensão, parte para a provocação fazendo o contrário do que lhe explicaram ser o modo correcto de assumir certos gestos sociais, demonstrando uma irreverência que mal disfarça a sua pura e simples incapacidade de aceitar noções básicas de boa educação perante diferenças que manifestamente parecem incomodá-la. Por esta razão, muito significativo será o facto de, após o primeiro embate com a cidade de Seul e os seus meandros boémios, a vermos burocraticamente sentada de frente para uma funcionária de uma associação que, segundo lhe disseram, pode descortinar o paradeiro dos seus pais biológicos. Para os devidos efeitos, a razão do seu regresso a Seul nunca fora clara. Há mesmo uma sequência onde Freddie, num contacto com a mãe adoptiva, despacha uma explicação casuística sobre a viagem em causa. Diz ela que fora mera alternativa a um voo previsto para o Japão, que entretanto fora cancelado. Não quis aqui o realizador e argumentista carregar a narrativa de explicações sobre o que faz correr Freddie, preferindo manter a sua protagonista livre de espartilhos e preconceitos que a pudessem limitar na futura demanda dos pais biológicos. De igual modo, conferiu ao seu percurso de estranha no seio de estranhos uma perspectiva enigmática, que não se limitou ao simples encontro com o pai, o mais rápido, e com a mãe, o mais difícil e quase impossível de prever. Mas, precisamente por isso, os espectadores acabam surpreendidos pela reviravolta que se produz no comportamento de Freddie. De súbito, a rapariga irrequieta que quer ser a dona da bola e dos lances decisivos para golo passa a ser uma rapariga disponível para aparar os passes que outros vão concretizando. Daí em diante, apoiada pela amiga Tena (Guka Han) que conhecera na Guest House onde ao início se hospedara, parece finalmente aceitar partilhar os pequenos gestos daqueles que entretanto irá conhecer. Numa primeira fase e numa outra cidade, assistimos ao encontro, que mais parece um confronto, de Freddie com o seu verdadeiro pai (personagem defendida pelo actor Oh Kwang-rok) e com a família deste, onde desponta uma autêntica matriarca na figura de uma avó particularmente opinativa (interpretada com competente vigor por Hur Ouk-Sook). Trata-se de uma família perfeitamente integrada no espírito sul-coreano, de confissão cristã, o que não constitui uma raridade na Coreia do Sul. Mas Freddie, mesmo com o apoio emocional e de filigrana da sua companheira e confidente, Tena, sente que o seu espaço vital está longe dali, os sentimentos que esboça encontram-se algures noutro lugar e noutro continente. Para além do mais, o seu pai biológico não a seduz. Demasiado coreano para o seu gosto ou rejeição de uma paternidade que pensa ser difícil conceber após anos e anos a viver e crescer com outro pai? Este homem casou com outra mulher, de quem tem duas filhas. Freddie lida mal com a sua condição de alcoólico e sobretudo não corresponde a uma certa má-consciência do pai, que fantasmas do passado mais inflamam. Memórias referentes a um período histórico conturbado vivido na Coreia do Sul, razão que o levou, junto com a então mulher e mãe, a dar a filha para adopção.

Lê Também:   EO, em análise
Regresso a Seul
©Alambique Filmes

Freddie chega mesmo a repelir abertamente as suas persistentes mensagens, e sobretudo o desejo por ele manifestado de a ver, não apenas regressar, mas ficar no seu país natal. Entretanto, à medida que os dias se esvaem em contactos que parecem não aquecer nem arrefecer, no decorrer daquela que devia ser uma breve estadia, pior ainda se sente quando a mãe biológica não responde aos apelos da instituição que faz os possíveis para dentro dos limites legais a contactar. Tempo, parece ser então o problema e a solução. Nesta conjuntura dá-se novo desvio da agulha e saltamos dois anos para descobrirmos, mais uma vez com alguma surpresa, Freddie já integrada na sociedade coreana. Mas pela porta errada, apesar de numa primeira abordagem não parecer muito errada, mas apenas subversiva. Daqui para a frente, o filme divide o percurso de Freddie em segmentos que correspondem a períodos específicos da sua nova identidade feita da simbiose da assimilada cultura francesa e ocidental com a coreana e oriental. Ela quer assumir as regras do jogo que decidiu jogar e parece dar-se bem na sua nova pele e no seu cinismo prático, mas o conflito que irá prevalecer no seu novo rumo, até praticamente ao final onde acontece um rápido, efémero e pungente reencontro com a mãe, será precisamente o da ausência de metas precisas, a impossibilidade real de adoptar uma nova identidade. Nessa altura dá-se conta, e nós com ela, de que mais depressa se faz o regresso a um espaço físico do que a um espaço habitado por sentimentos assombrados pela consciência da separação e pela distância dos verdadeiros laços familiares.

Regresso a Seul
©Alambique Filmes
Lê Também:   Nostalgia, em análise




Regresso a Seul, em análise
Regresso a Seul

Movie title: Retour à Séoul

Director(s): Davy Chou

Actor(s): Park Ji-min, Oh Kwang-rok, Guka Han, Kim Sun-young

Genre: Drama, 2022, 115min

  • João Garção Borges - 55
55

Conclusão:

PRÓS: Fica sobretudo a nota de intenções do realizador expressa numa entrevista de que publicamos um breve excerto: “O filme explora o tema da adopção internacional, mas vai muito para além disso. Freddie faz questão de procurar as suas origens. Liberta-se constantemente das identidades que lhe são atribuídas. A história da minha amiga, que agora também oferece apoio terapêutico para adoptados e adoptantes, já me dera essa pista. Ela tem um carácter forte e imprevisível, que me inspirou. Enquanto escrevia o argumento, fiz-lhe muitas perguntas, porque não nasci na Coreia do Sul, não sou mulher e não sou adoptado. Havia essa distância que me desafiava quanto à minha legitimidade para contar essa história. Mas, a dada altura, também me identifiquei com o projecto: nasci em França de pais nascidos no Camboja e fui lá pela primeira vez aos 25 anos”.

Fica igualmente a prestação dos actores, com particular atenção para os secundários, onde se destaca a complexa figura do pai biológico da protagonista, interpretado por Oh Kwang-rok. Faz o que se espera de alguém que parece igualmente desenraizado dos valores primordiais que gostaria de defender para a sua filha e família, muito por causa dessa cicatriz resultante da ferida aberta, inflamada pela forçada entrega de uma menina para adopção, num período conturbado da História sul-coreana.

CONTRA: Não se pode dizer que seja um erro de elenco, mas Park Ji-min atravessa o filme por vezes em velocidade de cruzeiro, outras como se fosse uma figura submetida a um potente sedativo. Há problemas na generalidade da direcção de actores que afectam, neste caso de forma mais concreta, aquela que aparentemente nunca antes representara qualquer papel. Não compromete irremediavelmente o filme, mas não lhe confere a chama e fulgor que o assunto e a personagem protagonista necessitavam para nos fazer acreditar na sua demanda por uma identidade perdida e no regresso material e espiritual ao país natal, nomeadamente quando os silêncios podiam e deviam ser mais expressivos que o ruído da diversidade das vozes inerentes ao confronto cultural e existencial.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply