EO, em análise
“EO” é o mais recente filme de Jerzy Skolimowski, uma obra protagonizada por Sandra Drzymalska, Lorenzo Zurzolo e Isabelle Huppert.
UM PRÍNCIPE COM PELE DE BURRO NA TERRA DAS BESTAS…!
Mesmo antes de atacar este artigo sobre um dos mais interessantes filmes que vi nas últimas semanas, IO (EO), 2022, do veterano realizador polaco Jerzy Skolimowsky, não me saía da cabeça a canção do Sérgio Godinho “Cá Se Vai Andando Com a Cabeça Entre as Orelhas”. Para além de achar graça a uma frase que, neste caso, nem se refere a um burro mas a um coro de respeitosas senhoras que assim exprimem na velhice as vicissitudes da sua condição humana, só me dava para pensar no significado que poderia ter aquela frase se atribuído ao percurso atribulado de um animal que, logo de início, vemos na arena de um circo com a rapariga que com ele contracena, Magda (Sandra Drzymalska). Trata-se de uma abertura lancinante onde se misturam imagens quase abstractas com a vertiginosa atmosfera concreta de uma presença em palco subordinada a uma lógica espectacular. Mas a sensação que prevalece não deixa margem para dúvidas, algo se passa que assombra aquela relação entre a bela e, não diria o monstro, mas o mais simpático e improvável dos actores. Pouco depois saberemos o como e o porquê da relativa ansiedade e inquietação da jovem, quando vemos o burro artista e intérprete de uma comédia da vida para consumo circense passar a burro proletário, preso a uma carroça com os artefactos da saltimbanca profissão, submetido a uma série de arbitrariedades do seu dono, que não hesita em usar o chicote para ele obedecer. Mas, alto e pára o baile. Magda não deixa que isso aconteça e de repente a narrativa pula e avança e quase sem darmos por isso estamos no meio de uma manifestação a favor da dignidade da vida animal, um partido ao estilo do PAN mas mais agressivo na sua mensagem militante, que empurra as autoridades para uma solução que não passa de uma meia solução, ou seja, a confiscação dos animais do circo que serão levados para um local onde supostamente serão cuidados com o amor e carinho que, pelo vistos, lhes era negado na anterior morada. E aqui começa a peregrinação exemplar do burro EO (onomatopeia para o zurrar dos asnos). Primeiro, vai para uma quinta que não sendo o Ritz possui instalações compatíveis com o conforto e alimentação que provavelmente nunca experimentara. Só que EO pode ser muita coisa, mas burro, só se for na espécie e na aparência.
Numa oportunidade de ouro, consegue dar o salto, depois de uma inesperada visita da amiga Magda, que entretanto já arranjara outro “burro”, desta vez na pele de um motard. Entretanto, aquele de que nós gostamos faz-se ao caminho, e aqui Jerzy Skolimowsky, com a preciosa intervenção do Director de Fotografia, Michal Dymek, da montadora, Agnieszka Glinska, e da música de Pawel Mykietyn, sem esquecer a fabulosa mistura de som, mergulha o filme numa pulsão nocturna onde a Natureza, a Fauna e a Flora se conjugam para gerar um outro mundo que nos encanta e atrai, mas que também nos faz recear pela sorte do burro de quem já começámos a partilhar as angústias que, com mais ou menos boa vontade, vamos decifrando a partir da visão dos seus olhos negros. Olhar praticamente sem expressão que provoca um impacto poderoso no desenrolar da acção quando a montagem usa e abusa, no bom sentido da palavra, do velho efeito Kuleshov. Numa das sequências mais belas de EO, o protagonista de quatro patas atravessa uma floresta onde outras criaturas, sobretudo animais nocturnos, nos dão o contraponto aos antigos filmes das produções Walt Disney. Não, aqui o cavalinho perdido, neste caso, o burrinho, não vai para a floresta em busca do seu “papai e mamãe”, como se ouvia nas versões brasileiras das ficções antropomórficas que aqui chegavam. Este burro está-se a borrifar para os progenitores, que provavelmente nem conheceu. Este burro é um ser adulto que procura alcançar um difícil equilíbrio entre o seu mundo e o mundo que o rodeia. Procura uma mulher que com ele tinha uma relação de afecto, sentimento que só por escassos momentos consegue obter das bestas humanas, que ou dele se aproveitam ou contra ele erguem o rancor e a violência própria dos piores canalhas. E isso acontece com particular fulgor na sequência em que se vê nomeado herói por uma equipa de futebol, porque os adeptos se convencem que ele fora decisivo na vitória, assim como na posterior sequência da vingança em que um grupo de imbecis da equipa adversária, uma cambada de hooligans, não consegue digerir a derrota atribuindo-a ao zurro de EO, audível com exuberante entusiasmo na jogada considerada decisiva. E acreditem, os espectadores que o haviam adoptado antes sofrem agora com ele como se sentissem as feridas e malfeitorias que lhe infligem, tal a capacidade de Jerzy Skolimowsky de manipular a matéria de que se faz o grande cinema. Como diria Samuel Fuller, “motion and emotion”, o lugar da acção e emoção.
Mas não se pense que ao longo dos seus oitenta e oito minutos não há lugar para um raio de luz que ilumine as almas de quem está deste e do outro lado do ecrã. Há, sim senhor, um humor subtil e certeiro que pontua aqui e além situações que são autênticos flagrantes da vida animal, humanos incluídos. Há mesmo momentos como aquele em que Michal Dymek enquadra o burro no estábulo como se ele fosse uma figura exemplar num presépio profano, não obstante um certo grau de imagética religiosa associada ao modo como ilumina o seu posicionamento relativo no décor. Numa palavra, EO constitui para mim uma das grandes surpresas no campo da moderna produção cinematográfica, enfim, uma surpresa anunciada que vem dar mais consistência ao panorama de estreias nestes primeiros meses de 2023. Para os devidos efeitos, o segundo cinco estrelas, ou 100 na nomenclatura numérica da MHD, que atribuo a seguir ao genial FAIRYTALE (SOMBRAS DO VELHO MUNDO), 2022, de Alexander Sokurov. E prova de que as listas dos melhores filmes do ano não deviam ser apelidadas assim, mas sim como listas dos melhores filmes estreados num determinado país e num determinado ano. Tivesse este EO estreado em Portugal em 2022 e seria seguramente um dos mais votados na minha classificação pessoal, que pode ser consultada no artigo geral que aqui se publicou com a referência TOP MHD: OS MELHORES FILMES DE 2022.
EO, em análise
Movie title: EO
Director(s): Jerzy Skolimowski
Actor(s): Sandra Drzymalska, Lorenzo Zurzolo, Mateusz Kosciukiewicz, Isabelle Huppert
Genre: Drama, 2022, 88min
-
João Garção Borges - 100
Conclusão:
PRÓS: Em 2022, recebeu o Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes, ex-aequo com LE OTTO MONTAGNE (AS OITO MONTANHAS), 2022, de Felix Van Groeningen e Charlotte Vandermeersch.
Parece ser um, mas na verdade foram usados seis burros durante a rodagem, e Jerzy Skolimowsky, ao receber o prémio em Cannes, agradeceu ao conjunto dos ditos, que bem merecem. Eles e os que deles cuidaram para que correspondessem ao projecto idealizado pelo realizador.
Notável exercício criativo que usa velhos efeitos do cinema para provocar novas sensações, no fundo as que são sempre inovadoras sem necessitarem de cair na bizarria forçada ou na vanguardice aguda, que nem sempre se perfila revolucionária. Dizem que EO foi inspirado num clássico do cinema francês e mundial, o genial AU HASARD BALTHAZAR (PEREGRINAÇÃO EXEMPLAR), 1966, do mestre Robert Bresson. Não basta a presença de um burro que percorre diversos locais e experimenta diferentes donos para encontrar essa inspiração até porque, na minha opinião, o projecto anterior possui na dialéctica entre espírito e matéria o seu impulso vital, e o actual joga numa materialidade não destituída de espiritualidade, mas que não impede o destino concreto que a partir de certa altura suspeitamos poder vir a ser o de EO. Basta recordar declarações do próprio Robert Bresson, que dizia querer nomear o burro do seu filme com uma referência bíblica, Baltasar, o rei mago. E acrescentava que o seu filme era sobre as nossas ansiedades e os nossos desejos face a uma criatura viva que irradiava humildade, uma serenidade santa, que por acaso era um burro. Seriam o orgulho, a avareza, a necessidade de fazer sofrer, ou a sensualidade que experimentava junto dos donos, os sentimentos e actos que acabavam por determinar o seu sofrimento e finalmente a sua morte. Não podemos separar da obra do realizador francês o peso do seu misticismo cristão. No EO de Jerzy Skolimowsky a onomatopeia que resume o sentido do projecto, o He Ho do zurro animal, passa por ser uma declaração muito mais prosaica. Não é melhor nem pior, perfila-se apenas diversa, e se quisermos encontrar sinais de inspiração podemos e devemos procurá-los na própria obra do realizador polaco. Já agora, não seria nada mau repor alguns dos seus filmes, incluindo algumas curtas-metragens dos primeiros anos na Polónia e na prestigiada Escola de Cinema de Lodz. E faço idêntico apelo ou desafio para o clássico de Robert Bresson.
CONTRA: Nada.