Sempre uma celebração do 25 de Abril no Festival de Veneza
“Sempre” , um filme realizado por Luciana Fina e com produção da Cinemateca Portuguesa, que comemora a Revolução dos Cravos, foi apresentado na ‘Giornate degli Autori’, aliás como a curta “Kora”, de Cláudia Varejão, sobre mulheres migrantes. São os dois únicos filmes portugueses presentes nesta secção paralela e no Festival de Cinema de Veneza 2024.
Um evocação da liberdade
Luciana Fina, cineasta e artista visual italiana radicada em Lisboa desde 1991, apresentou na Giornate degli Autori na secção “Noites de Veneza”, o seu novo filme “Sempre”, um documentário que evoca o 25 de Abril de 1974. Trata-se de um filme que recorre a imagens de arquivo da Revolução dos Cravos e outras inéditas, que refletem a transição do fascismo para a democracia em Portugal. Esta obra combina cinema de arquivo, televisão e filmes amadores, tentando criar um diálogo entre o passado e o presente do nosso País.
Uma instalação comemorativa
O ponto de partida de “Sempre” foi uma instalação audiovisual, que foi projectada nas paredes de tijolos da escadaria da Cinemateca Portuguesa, na primavera passada, que dá acesso ao terraço, por ocasião da celebração dos 50 anos do 25 de Abril, onde a realizadora revisitar essas imagens da Revolução, mostrando essa transição da ditadura para a liberdade e o processo que se seguiu, de construção de um ‘novo país’ e um futuro melhor para os portugueses.
A história da Revolução em imagens
Fina conta que a ideia para este filme, que complementa a instalação, nasceu de um convite da Cinemateca Portuguesa/Arquivo Nacional da Imagem, que lhe deu acesso a um vasto arquivo de filmes restaurados relacionados com a Revolução dos Cravos. ‘Estes materiais, bem preservados e cuidadosamente restaurados, representavam uma verdadeira mina de ouro. Queria criar uma narrativa que oferecesse uma perspectiva sobre a história da revolução e o seu impacto não só em Portugal, mas também a nível global.’
Os arquivos da RTP
Embora se sentisse profundamente grata pelo acesso a esses arquivos de filmes, a realizadora optou por alargar o seu horizonte visual, indo mais além e incluindo em “Sempre”, os não menos preciosas arquivos da RTP, a televisão pública portuguesa e a única que operava na altura. ‘Os realizadores da época’, explica, ‘compreenderam bem a importância da televisão como meio de chegar a um público mais vasto, sem comprometer a qualidade cinematográfica. Isto permitiu-me incluir as perspectivas de pessoas comuns, que experimentaram a revolução e a filmaram, em primeira mão’. Contudo, escolhendo muitas imagens inéditas, deu-nos uma nova ou mais alargada visão da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura fascista e das suas consequências.
A liberdade e o PREC
“Sempre” mostra-nos momentos incríveis de agitação popular como as ocupações estudantis de 1969 e do PREC (Processo Revolucionário em Curso), as movimentações nos anos seguintes à Revolução, que tiveram situações de grande tensão política e social. “Se anteriormente os jovens reagiram contra a opressão fascista com uma visão global e sistémica dos problemas, os atuais movimentos juvenis, embora cheios de energia, tendem a abordar questões específicas sem as ligar a um quadro mais amplo.”
Uma homenagem aos artistas
O documentário “Sempre” é também uma homenagem ao cinema, aos artistas, aos jornalistas e repórteres de televisão e rádio da época. No entanto, reflectindo sobre o panorama contemporâneo, o documentário expressa bem uma certa nostalgia pela autenticidade e pela participação activa que caracterizava o cinema da época. Embora muitos filmes atuais tratem de temas importantes como a migração, — como é o caso de “Kora” de Cláudia Varejão — falta-lhes muitas vezes a profundidade e a proximidade que fizeram do cinema do passado uma ferramenta poderosa para a mudança social. A realizadora sublinha que, no passado, o cinema era bem mais empático e envolvente, não se limitando apenas a uma mera observação passiva da realidade.
O cinema-resistência
No entanto, apesar das diferenças com o passado, Luciana Fina acredita que o cinema continua a ser uma ferramenta de resistência e de luta. Embora outrora o inimigo fosse claro e tangível, com uma ditadura, a censura ou a repressão evidentes, hoje as formas de controle dos cidadãos, são bem mais subtis e menos visíveis. Os mecanismos económicos, sociais e políticos continuam a limitar a liberdade de expressão e também a influenciar a forma como a informação é transmitida, incluindo também no cinema.
Melancolia e mudança
‘Vivemos numa época das trevas’, declarou a realizadora, “onde a ideia de futuro se perde nesta escuridão, e o que esta experiência revolucionária mais tem para nos ensinar é a capacidade de imaginar um mundo emancipado”. “Sempre”, a obra de Fina é, pois, uma tentativa de repensar a história através do cinema, recordando e homenageando, não sem uma pitada de melancolia, uma época em que o audiovisual não se limitava a observar a mudança da sociedade, mas fazia parte dela.
“Kora”: Histórias de mulheres migrantes
Apresentado também na Giornate degli Autori 2024, tal como “Sempre”, o filme “Kora” da cineasta portuguesa Cláudia Varejão, é uma curta-metragem documental realizada maioritariamente a preto e branco, onde as histórias de cinco mulheres refugiadas é composta em base por detalhes e imagens internas, que se cruzam num fluxo de consciência, experiências, testemunhos e traumas e fotografias daqueles que amam e deixaram para trás. Cláudia Varejão, regressa assim a esta secção paralela do Lido, depois de ter apresentado e ter ganho o prémio principal com a sua obra de ficção “Lobo e Cão” (2012). Esta curta “Kora”, com a duração de 28 minutos, é basicamente uma recolha de testemunhos de cinco mulheres refugiadas que vivem em Portugal, que fugiram de contextos dramáticos de ditadura ou de guerra, como aquele de onde provém Norina, vinda do do Afeganistão.
Rostos escondidos
Porém, “Kora”, diferentemente de “Sempre”, assenta inteiramente na dicotomia presença/ausência dos rostos dessas mulheres, inicialmente negada, como acontece nas sociedades patriarcais extremas que ainda existem — e que usam por exemplo a burka — e depois mostradas sob a forma de uma fotografia de passaporte. As cinco mulheres protagonistas além de Norina são: Inna da Ucrânia, Zohra do Sudão, Margarita da Rússia e Lana da Síria, que contam a sua história de vida, sem nunca serem enquadradas no rosto ou pelo menos não na íntegra. Num dos casos, o rosto é mesmo coberto por uma máscara de concepção abstracta, onde se destaca uma textura claro-escuro, feita de linhas de pele, rugosidades, impressões digitais e detalhes dos olhos. Cada história termina com a protagonista num carro e numa cabine automática de fotografias para passaporte. É aqui que aparecem algumas imagens de cores únicas, que brincam com fundos coloridos em constante mudança, paredes de azulejos das estações de metro de Lisboa. Atenção para a beleza da música original de Joana Gama, que dá fundo nostálgico aos depoimentos.
JVM