SSIFF72 | Habemus Papa e “Emmanuelle” 2.0
Uma “Emmanuelle” do século XXI é uma arriscada proposta da realizadora francesa Audrey Diwan (“O Acontecimento”), como abertura do festival e da Competição do 72º Festival de San Sebastián. Enquanto isso, habemus um novo Papa, numa “Conclave”, organizada por Ralph Fiennes e com a realização do alemão Edward Berger (“A Oeste Nada de Novo”).
Audrey Diwan, a vencedora do Leão de Ouro de Veneza em 2021 com o seu filme anterior, “O Acontecimento”, segundo o romance de Annie Ernaux, empreendeu uma nova e atraente mas ao mesmo tempo muito arriscada aventura falada principalmente em inglês: resgatar com um olhar feminino, a partir das novas perspectivas de género e de erotismo do século XXI, uma personagem que foi um ícone do cinema erótico, suave e burguês dos anos setenta e que teve o seu auge nos anos 90, com alguns sucessos de bilheteira. Nada mais nada menos do que “Emmanuelle”, a personagem criada pela escritora Emmanuelle Arsan e que deu origem ao filme homónimo de 1974, protagonizado por Sylvia Kristel, que foi um escândalo para alguns e as delicias dos voyuers lisboetas com longas filas à porta do Cinema São Jorge no verão de 1975. O relativo sucesso desse filme deu origem a várias sequelas seguinte, todas bastante más aliás, interpretadas pela própria Kristel ou por Laura Gemser, num franchise iniciado com “Emmanuelle Negra”, em 1978. Porém o que resta dessa “Emmanuelle” não tem nada a ver com este novo filme de Diwan, escrito em parceria com a realizadora Rebecca Zebrowski, que apesar de no genérico dizer que se baseia no romance (ou na personagem) de Arsan, bebe apenas alguns aspectos — talvez a incessante e hedonista busca de prazer e risco — da personagem em questão, que era uma ‘dondoca’, que então acompanhava apenas, o marido na sua missão de diplomata na Tailândia.
Agora temos a executiva Emmanuelle (Noémie Merlant), que também anda em busca de um prazer perdido e sem limites, — no fundo andamos todos ao mesmo — mas menos fútil e mais decidida em relação aos homens. Um dia, a cadeia de hotéis de luxo para quem trabalha leva-a a viajar para Hong Kong para analisar a quebra de receitas ou de faturação de um dos seus estabelecimentos mais top. Porém, ao fazer esse levantamento, encontra um hotel que funciona na perfeição e que satisfaz aos limites os desejos dos hóspedes. Emmanuelle (na verdade nunca ouvimos chamar-lhe por este nome) é quase obrigada pelos patrões, a arranjar uma desculpa ou a encontrar uma falha para despedir com justa causa a competente diretora a Sra. Parsons (Naomi Watts). Durante a sua estadia, em que se movimenta quase como uma hóspede, para testar os serviços, a mulher conhece Lee Jae-Yong, (Will Sharpe) um atraente e misterioso executivo que tem uma rotinas estranhas e mantém decerto modo o seu anonimato e descrição perante o hotel. Emmanuelle começa a ficar obcecada com ele e começa a segui-lo. Porém a sua obsessão começa a desligá-la do trabalho e do seu principal objectivo laboral, para outros prazeres.
Logo no inicio, há a sequência de sexo com outro passageiro na casa de banho de um avião em pleno voo — uma fantasia de muitos e um cliché muito batido —, depois relações lésbicas muito softs que não passam de uma masturbação e depois essa busca incessante por um prazer perdido e pelo risco, tem muito pouco sexo ao longo do filme. Muita parra e pouca uva! A Hong Kong — faz lembrar logo a cidade de “Chunking Express”, de Wong Kar-wai — que Diwan filma, muito bem diga-se de passagem, não tem nada a ver com o exotismo da Banguecoque e os ambientes do primeiro filme; nem nenhuma das decisões que o protagonista toma são feitas em função das aspirações e desejos masculinos: esta é uma mulher livre, que decide por ela própria. Afinal esta é outra história com uma outra personagem, completamente diferente. Por isso, este “Emmanuelle”, de Audrey Diwan é um um filme que vira completamente do avesso, o imaginário do que antes se chamava cinema para adultos, porque o feminismo, o movimento #Me Too e o bom senso fizeram prevalecer outras necessidades, buscas e identidades e sobretudo outras preocupações bem mais dignas e correctas, em relação ao papel da mulher.
Luxuoso, delicado, estético, sofisticado, nocturno este filme de Audrey Diwan levanta outras questões sobre a sexualidade feminina e masculina também (a impotência em jovens, por exemplo) e as múltiplas faces do desejo e prazer. Porém falta-lhe alguma magia, exotismo e sobretudo não tem nada de provocante, além de tornar-se tudo muito artificial, muito óbvio e sensaborão. Noémie Merlant, que dá vida a esta nova Emmanuelle, é uma actriz fabulosa de uma sensualidade extrema, sobretudo quando a vimos ‘abrasar’ em “Retrato de Uma Rapariga em Chamas”. Porém aqui parece fria, rígida e inexpressiva e pouca à vontade tanto no seu papel como no espantoso guarda-roupa e vestidos bem decotados. Notável é a interpretação e a elegância de uma Naomi Watts, associado ao pouco trabalho, mas excelente dos dois atores que surgiram em algumas das séries de televisão de maior sucesso da atualidade: Will Sharpe (“The White Lotus”) e Jamie Campbell Bower (“Strange Things”), que têm muitas aparições. “Emmanuelle” na verdade não mexe connosco, chega até a ser um bocadinho aborrecido; ou antes queria dizer não dá tesão nenhum e isso nunca fez mal a ninguém, mesmo que mantenhamos as nossa preocupações em relação aos abusos sexuais, às questões de género e a todos os temas fracturantes da actualidade.
Enquanto uns estão virados para o erotismo soft e para o sexo hedonista em “Emmanuelle”, o grande Ralph Fiennes assume o comando de um tenso e esplêndido thriller eleitoral e passado no universo papal e do Vaticano — não é preciso haver assassínios para haver suspense — intitulado “Conclave”, do realizador alemão Edward Berger. Lembram-se que surpreendente arrancou vários Oscars com uma nova versão do filme de guerra “A Oeste Nada de Novo”, estreado na Netflix? Fiennes, que também é produtor executivo deste novo filme de Berger, lidera um elenco de primeira linha, que inclui Stanley Tucci, John Lithgow e Isabella Rossellini, entre outros, numa excelente adaptação do romance de Robert Harris, quase como sempre cheio de intrigas e mistérios. Após a morte inesperada do Sumo Pontífice, o Cardeal Lawrence (Fiennes) é nomeado para liderar um dos rituais mais secretos e antigos do mundo: a eleição de um novo Papa. Quando os líderes mais poderosos da Igreja Católica se reúnem nos corredores do Vaticano e na sala do Concílio, Lawrence vê-se envolvido numa complexa conspiração enquanto descobre um segredo que pode abalar os alicerces da Igreja. Lawrence está intimamente alinhado com o relutante candidato americano Bellini (Stanley Tucci), cujo liberalismo o obriga a opor-se ao mais tradicional e preconceituoso italiano Tedesco (Sergio Castellitto). Enfrentam também a concorrência do mais poderoso americano Tremblay (John Lithgow), do cada vez mais popular nigeriano Adeyemi (Lucian Msamati) e de um candidato surpresa e misterioso na forma de Benitez (Carlos Diehz), que tem trabalhado em Cabul.
As regras ditadas pela Conclave criam uma escalada de suspense, onde tudo são segredos. Lawrence não está à partida interessado em fazer o papel de detective, mas quanto mais descobre sobre os candidatos a partir de fragmentos de informação partilhada por aqueles que o rodeiam, mais é obrigado a quebrar as regras, precisando de factos concretos em vez de boatos. Fiennes torna-se num atraente investigador e mediador de conflitos, operando em circunstâncias extremas à medida que ele próprio começa a subir no poder, ganhando votos que afirma não querer, porque terminada a sua missão quer resignar. No fundo trata-se de uma eleição papal que impulsiona um oportuno e tenso thriller político, como há poucos. Há mesmo alguns acenos em relação à sua atualidade corrente — esta questão foi aliás levantada recentemente na passagem do filme pelo Festival de Toronto — fazendo quase uma comparação com uma ‘convenção política americana’. Porém, esta “Conclave” é também uma eleição repleta de riscos e reviravoltas, num cenário bem contemporâneo: há dois lados que se opõem e que esperam um empurrar o catolicismo para trás e o outro para avançar, abraçando a diversidade ou expulsando-a. Esta é também uma das varias tensões que marca o filme, que mostra ainda debates num pequeno auditório de uma grupo de cardeais, que à margem do grande evento se reunem para decidir em quem votar e que falam sobre como deveria ser uma igreja moderna e o seu líder, que sacrifícios devem ser considerados e quão difícil é ainda convencer alguns dos membros da Igreja, da necessidade de mudar e evoluir.
O filme de facto aborda discussões complicadas e muito actuais da Igreja Católica. Por exemplo: Será que a eleição de um papa negro ou africano mostrará realmente um sinal de progresso, se se mantiverem no seio da Igreja determinadas posições em relação à comunidade LGBTQ+? Como se pode modernizar uma religião tão antiga sem que esta perca completamente a sua essência? São tópicos muito interessantes que o filme toca ao de leve, que acabam pouco explorados pelo essencial da história: a eleição de um novo Papa e o ambiente permanente de conspiração e luta pelo poder no Vaticano. O clímax fica mesmo para o final, quando uma reviravolta, quase incompreensível à primeira vista, leva o filme para um território novo e absolutamente surpreendente, quando prevíamos outra coisa. É polémico….mas….na verdade, talvez não seja necessário levar muito a sério este final, já que “Conclave”, não passa de uma brilhante adaptação ao cinema de um romance de bolso, daqueles de aeroporto para ler em viagem, e não uma drama profundo sobre algumas das grandes questões da Igreja Católica e do mundo moderno.
JVM