The Matrix Resurrections © Cinemundo

The Matrix Resurrections, em análise

The Matrix Resurrections” ressuscita-se como uma piada sarcástica de mau gosto, que praticamente desvirtua a essência da trilogia. Lana Wachowski arrisca numa fórmula completamente anticlímax, só se levando mais a sério no último terço de filme.

O Rui Veloso já dizia na sua letra “As Regras da Sensatez”, para nunca voltarmos ao lugar onde já fomos felizes e, de facto, é com essa sensação agridoce que passamos por duas horas e meia de filme, como se nos tivessem a dar uma resma de comprimidos para a estupidez. O trio que redigiu o manuscrito de “Resurrections” (Lana Wachowski, David Mitchell e Aleksandar Hemon) – autointitulado “The Pit”, que traduzido à letra para português deverá pronunciar-se em algo como “A Fossa” ou o “Abismo” -, já trazem bagagem conjunta desde “Cloud Atlas” e mais recentemente de “Sense8”, o que ainda abona menos a favor da estapafúrdia trapalhada argumentativa por eles criada. E se a ideia era endereçar uma carta de amor aos fãs, Lana não podia ter escolhido um caminho menos forçado, perfuntório e servil, que denota uma gritante crise de identidade, daquele tipo em que o corpo e o espírito avançam para a nossa matriz temporal de lustrosas imagens vulgarizadas pelo “fast consuming”. No fundo, é como se este “Ressurections”, tivesse sido vandalizado por um programa viral de comédia negra turbinado num filtro freudiano a troçar-se de si mesmo compulsivamente, até se lembrar que a lendária história de Neo e Trinity não merece ser tratada como um romance pateta para adolescentes, despojado do discurso filosófico e sentimental que imortalizou o filme original.

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É que esta nova versão mais psicanalítica do programa Matrix, ao reiniciar-se da flutuação anómala de uma equação perfeita (Neo), atualizou o seu arquiteto algébrico para um maníaco psiquiatra denominado de “analista”, que Neil Patrick Harris encarna com toda a propriedade, à luz do que seria um compassivo aliado, até a sua vil egolatria passivo-agressiva não aguentar mais o antagonismo da fachada imaculada. E quem é o seu paciente? Nada mais nada menos que Thomas Anderson (Keanu Reeves) – que nesta iteração sexagenária do simulador, é tido como um mago da programação, outra vez, cujos louros são-lhe atribuídos pela criação de um aclamado videojogo em tudo idêntico à sua experiência vivencial em “The Matrix”. Confuso? Basicamente, o Sr. Anderson é levado a reacreditar pelas Máquinas autoconscientes – que o ressuscitaram a ele e a Trinity/Tiffany (Carrie-Anne-Moss) para alimentar o aumento do fluxo energético necessário à operabilidade do novo código do Matrix -, na ideia de que a sua virtualização jogável não passa disso mesmo, um devaneio alucinante de puro génio criativo. Contudo, Thomas Anderson ainda retém reminiscências da sua vida passada como Neo, bem como do inquebrável elo emocional a Trinity.

The Matrix Resurrections Corpo
The Matrix Resurrections © Cinemundo

Dito assim, o enredo até parece reabrir a toca do coelho com o mesmo encanto pelo diálogo existencial e metafísico colhido do primeiro filme, mas logo damos conta que há demasiadas tocas e coelhos a saltar fora do lugar, que acusam uma paupérrima execução conceptual de referências e clichés abusivos, ainda mais subtraídos por uma linguagem millenial frívola e oca de significado. Na verdade, o problema mais agudo com a entrega deste universo matrixiano, tem muito que ver com a “mood” completamente deslocada, que desmesuradamente rouba “Ressurections” da sua profundidade dramática, e consequentemente da sua alma. É por isso que de um ponto de vista interpretativo, quase todas as atuações são serviçais, e só no último terço da fita, quando Lana reduz tardiamente o volume do tom jocoso obsessivo, é que lá conseguimos vislumbrar uns laivos daquela seriedade emocional entre Reeves e Moss em Neo e Trinity. Até podemos admitir, que as nossas querelas com a direção estilística da narrativa tão trans e meta de “Resurrections”, à imagem da sua própria criadora, ecoem sem resistência alguma num público mais identificado com estas novas tendências sociais transicionais. Mas temos cá para nós, que Lana foi longe demais nesta abordagem nada ortodoxa da tradicional “action-flick”, onde menos teria sido claramente mais.

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Para começar, somos brindados com uma reprodução da famosa cena do primeiro “Matrix”, em que uma outra “Trinity” e um outro “Smith” nada convincentes, que logo ficamos a saber que se trata de uma prematura versão de Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II), cai-nos como um balde de água fria quer em termos cénicos, mas sobretudo representativos, não obstante algumas coreografias contempladas por um espicaçante jogo de luz e sombra. O verdadeiro “Smith” (Jonathan Groff) aqui é mais amigável, ou não, e não usa fato preto, mas não vamos estragar já essa surpresa. Em seguida, surge um de muitos “easter eggs” em que o pseudo-agente “Morpheus” dá-se a conhecer a Bugs (Jessica Wenwick) – uma imitação sua de capitã com traços de “Wanda Stuart” -, no mesmíssimo quarto minúsculo e atafulhado onde Thomas Anderson ansiava por ser encontrado. A sucessão de eventos é apelidada de “Modal”, que de forma resumida consiste num programa de testes baseado em eventos passados do Matrix, destinado a fazer evoluir outros programas. Parece tudo muito “high-tech” e refrescante, mas, novamente, o sentido humorístico presente nesse momento em particular não poderia ser mais “cheesy”, isto já para não falar de quando esta imitação barata de Morpheus aparece saída de uma casa de banho pública, todo empinocado numa fatiota berrante, a invocar um retorcido e piroso “déjà-vu” da sua aparição na mansão de 1999. Absolutamente horrendo, e até a roçar o insultuoso, pelo menos aos nossos olhos.

The Matrix Resurrections Corpo
The Matrix Resurrections © Cinemundo

E é nessa métrica desconcertante, que somos sugados para vórtices de espelhos e corredores de portas com destinos secretos, como se estivéssemos a dar a volta ao mundo num comboio de alta-velocidade, e todas as paragens e locais fossem uma reconstituição anacronicamente adulterada de acontecimentos chave de toda a trilogia. Mesmo a nível estético, Lana rompe com o paradigma visual dos Matrixes anteriores, despindo-os do lado mais belicoso imprimido pelas grandiosas construções de arte déco e vestimentas góticas, que aqui são lavadas por uma fidelidade imagética próxima da nossa atualidade, quer em termos artísticos, quer em termos de adereços, não deixando de reter um certo gradiente obscuro e noir, na tentativa de puxar pela comoção quase inexistente. No entanto, poder-se-à afirmar que este “The Matrix Resurrections” mantém uma bitola alta no que diz respeito à sua apresentação, com algumas propostas interessantes em termos de “eye candy”, mas peca por ser inconsistente no plano prático, sobretudo em termos coreográficos, com algumas montagens a saírem com aspeto desleixado. Pese embora as falhas técnicas, “Resurrections” deixa na retina talvez duas ou três “set-pieces” de ação minimamente gratificantes, que usam e abusam do efeito “bullet time”, num sentido que diríamos não mais que giro, se rapidamente esquecível.

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O que salva esta penosa entrada na história de ser prontamente apagada para o “recycle bin”, é sabermos que no meio de toda esta maluqueira pegada, com um Morpheus diva efeminado, um Smith que parece mais um Ken, e uma Niobe (Jada Pinkett Smith) semelhante a um velho odioso “Jack Sparrow”, prevalece a força motriz que suaviza as arestas com o romantismo de Neo e Trinity. E vê-los novamente a ensaiar a faísca do amor quase duas décadas depois do trágico final de “Revolutions”, aquece-nos o coração de nostalgia, mesmo que essa chama seja reacendida num café com um nome tão óbvio como “Simulatte”. Pouco mais nos apraz dizer sobre este “Matrix”, a não ser que Lana esbanjou aqui uma oportunidade soberana de reativar a saga de forma inesquecível. Há memórias que só são bonitas no contexto do seu passado e, por isso mesmo, nunca deveriam ser remexidas e ressuscitadas.

Miguel Simão

The Matrix Resurrections | Em Análise

Movie title: The Matrix Resurrections (Em Exibição)

Movie description: Em um mundo de duas realidades - a vida cotidiana e o que está por trás dela - Thomas Anderson terá de escolher seguir o coelho branco mais uma vez. A escolha, embora seja uma ilusão, ainda é a única maneira de entrar ou sair da Matrix, que é mais forte, mais segura e mais perigosa do que nunca.

Country: EUA

Duration: 2h28min

Author: Miguel Simão

Director(s): Lana Wachowski

Actor(s): Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Jada Pinkett Smith, Christina Ricci, Neil Patrick Harris

Genre: Sci-Fi, Ação

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  • Miguel Simão - 50
  • Manuel São Bento - 40
45

CONCLUSÃO

“The Matrix Resurrections” poderia ter sido um regresso em grande de uma das franquias mais idolatradas do cinema, mas ao invés disso perde o norte numa sátira a si mesmo, que hiperboliza conceitos, ideias e referências, aniquilando-as logo à nascença numa zombaria crónica. Lana, ao tentar oferecer uma visão do Matrix completamente distinta, adulterou em demasia o espírito dos filmes anteriores, de uma forma que transparece como leviana na edição final. “The Matrix Resurrections” é uma ressurreição destrambelhada a precisar urgentemente de um exorcismo!

Pros

  • O regresso de Neo e Trinity
  • Altos valores de produção
  • Algumas cenas de ação valorosas

Cons

  • Execução do enredo
  • Estilo da narrativa
  • Hiperbolização de conteúdos
  • Desvirtuação do original
  • Coreografias apressadas
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