10ª Festa do Cinema Italiano | Un Bacio, em análise

Un Bacio mostra-nos uma história previsível e emocionalmente devastadora de três adolescentes ostracizados que encontram paz na companhia uns dos outros. Pode não primar pela originalidade, mas este é, sem dúvida, uma das narrativas mais lacerantes desta 10ª Festa do Cinema Italiano.

un bacio festa do cinema italiano

Un Bacio, o mais recente filme do argumentista e realizador Ivan Cotroneo é uma das obras mais formulaicas e recheadas de clichés a chegar aos cinemas nos últimos tempos. O filme parece ser o produto de uma experiência em que se tentou criar o híbrido perfeito entre os dramas de escola secundária assinados por John Hughes nos anos 80, a série musical Glee, 90 % de todos os filmes sobre adolescentes que a TLA Releasing distribui nos EUA e, é claro, uma generosa dose de As Vantagens de Ser Invisível. Não há um único segundo do filme que não seja amplamente previsível mas, apesar de tudo isso, a sua abjeta falta de originalidade é o seu melhor elemento.

Por muito apetrechado de clichés que o filme seja, tanto os cineastas como as próprias personagens de Un Bacio aparentam estar bem cientes de quanto devem à cultura popular. Por exemplo, quando um dos protagonistas do filme, que é um jovem homossexual assumido, está a chegar à sua nova escola, Un Bacio desdobra-se numa fantasia musical saída diretamente de Glee. Mais tarde, a mesma personagem referencia a série como um objeto de inspiração. Noutra ocasião, as três personagens principais, o trio dos maiores falhados e párias sociais da escola secundária local, estão a jantar numa pizaria deserta vestidos com roupas extravagantes dos anos 80. Há uma preciosidade afetada e estudada tão óbvia que o momento mereceria uns bons revirares de olhos, não fosse o modo como as próprias personagens dizem que estão a imitar os filmes de adolescentes dos anos 80.

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No universo de Un Bacio, a cultura, popular e não só, com que as pessoas crescem e se identificam acaba por se tornar numa matriz pela qual elas delineiam narrativas para as suas vidas. Isso ocorre de modo teatral, mimético e intencional como, por exemplo, no jantar; de modo mental, interior e sonhador como na fantasia musical; ou até a um nível inconsciente onde essas mesmas referências regem o modo como cada pessoa compartimenta e encara os desafios das suas vidas. É evidente que isto também acontece no nosso mundo, mas é raro o filme que admita tal relação entre o ser humano, especialmente os jovens, e a cultura que os envolve e molda a sua perceção.

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Esse fenómeno é mais ou menos justificado pelo facto de os modos de expressão narrativa, como a maior parte do cinema e televisão, são em si formas de aplicar estruturas artificiais à amorfia das nossas vidas e assim conjurar significado do caos. Na maioria dos casos, referir como as pessoas constroem a sua própria perspetiva do mundo baseado nessas aplicações artificiais de ordem, faria resvalar qualquer projeto numa espiral de metatextualidade intrinsecamente incompatível com a condição ilusória, escapista e imersiva que é pretendida. O que é surpreendente em Un Bacio é que esse conflito nunca ocorre ou afeta perniciosamente o filme. Pelo contrário, essa dimensão acrescenta-lhe uma necessária profundidade concetual e maturidade emocional.

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Também lhe acrescenta uma dimensão muito trágica, mas, antes de falarmos desse aspeto, talvez fosse apropriado descrever o enredo em questão. Un Bacio conta a história de Lorenzo, um rapaz gay que foi recentemente adotado por um casal de meia-idade; de Blu, uma jovem que, depois de o que aparenta ter sido uma tórrida ménage à trois da qual ela não se lembra bem, se tornou no alvo de ódio e chacota dos seus colegas; e Antonio, um atleta considerado estúpido e pouco inteligente por todos e que ainda está a recuperar da inesperada morte do seu adorado irmão mais velho, que ele vê em recorrentes alucinações. No começo do novo ano escolar, eles conhecem-se, Blu e Lorenzo travam logo uma rápida afinidade e acabam por arrastar Antonio consigo quando reconhecem nele outra alma solitária.

Durante algum tempo, eles vivem uma existência idílica, cheia de planos de vingança contra os seus colegas preconceituosos e montagens musicais ao som de Lady Gaga. No entanto, um gesto sexual, uma reação violenta causada pelo medo e a pressão de toda uma sociedade de valores tradicionais acabam por tornar o seu Éden numa tragédia altamente previsível mas não por isso menos devastadora. Aliás, é a sua previsibilidade que converte o horror desta narrativa no ato final de uma tragédia adolescente.

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E é aqui que temos de voltar ao modo como o guião nos mostra toda esta intriga através de uma montanha de fórmulas e clichés que tanto nos ilustram a relação humana com a cultura envolvente como a nossa relação geral com narrativas. Afinal, o que é um preconceito como a homofobia senão uma reação hostil face a algo que rompe com a estrutura que edificámos não só para a nossa vida como para o mundo em geral? Na mesma linha de pensamento, o que são as fantasias de Lorenzo, senão uma tentativa de oferecer a si mesmo uma narrativa alternativa em que ninguém o odeia pela sua sexualidade? A própria Blu, que narra todo o filme em voz-off, está constantemente a escrever cartas a si mesma no futuro, relembrando-lhe como foi a sua adolescência e, ao mesmo tempo, moldando a sua vida na forma de uma estrutura escrita e dramática. O próprio clímax do seu enredo individual reflete o modo como a história de uma noite mal lembrada foi moldada por forças exteriores de tal modo que, quando Blu finalmente descobre outra versão dos acontecimentos, o efeito é cataclísmico.

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Com tudo isto em conta, o modo como a felicidade do trio implode sobre si mesma acaba por ser muito mais que a mera tragédia do bullying, da homofobia internalizada e da violência gerada por noções tóxicas de masculinidade. É, na verdade, a história de como três pessoas ostracizadas pelas noções de normalidade da sociedade dominante tentam tomar controlo das suas narrativas pessoais, mas acabam por ser esmagados nos seus esforços. Tirando essa dimensão textual, Un Bacio é um poço de banalidade cinematográfica, mas as suas ideias subjacentes são surpreendentemente complexas e acabam por conceder uma admirável dignidade às suas personagens arquetípicas. No final, não há heróis, vilões ou simples vítimas, não há uma resolução descomplicada, mas sim a oferta de uma versão diferente da realidade, uma narrativa alternativa em que o ódio intolerante não infetou o júbilo inocente de três jovens que ainda se estavam a conhecer a si mesmos.

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O MELHOR: O guião e sua subtil complexidade concetual.

O PIOR: A venenosa mediocridade que se estende a todos os aspetos do filme que não o seu guião. Não querendo ser imprudentemente cruel, Ivan Cotroneo já há muito se provou um hábil argumentista, mas talvez estivesse na altura de parar de tentar ser também um realizador.



Título Original:
Un Bacio
Realizador:
Ivan Cotroneo
Elenco:
Rimau Ritzberger Grillo, Valentina Romani, Leonardo Pazzagli, Simonetta Solder
Drama | 2016 | 102 min

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