Variações, em análise
“Variações”, a primeira longa-metragem do realizador João Maia, é uma tentativa de trazer a vida do barbeiro cantor António Variações ao grande ecrã.
Num dos fenómenos mais curiosos do cinema mundial dos últimos anos, parece que estamos a viver um apogeu de cinebiografias musicais sobre cantores queer europeus que ganharam fama nas décadas de 70 e 80. Tal especificidade é bizarra, mas é inegável. Primeiro veio o fenómeno de “Bohemian Rhapsody” sobre Freddie Mercury. A seguir, foi a vez de Elton John com “Rocketman” e já se produzem também filmes sobre David Bowie e Boy George. Até no cinema português isto se manifesta sob a forma de “Variações”, uma dramatização da vida de António Variações. Ele que foi um artista cujo trabalho e cujo legado tanto se enraizaram na psique coletiva portuguesa que mesmo os mais novos que não sabem quem ele é certamente já o ouviram.
Apesar de ter morrido novo e só com dois álbuns gravados, António Variações é sinónimo de música portuguesa no seu melhor. A sua imagem era ousada, descaradamente queer num Portugal ainda agarrado aos conservadorismos católicos que tanto definiram a nossa nação ao longo do tempo. Além disso, a música que apresentava ao país era arrojada e nova, uma sonoridade com um pé no folclore tradicional e outro no futuro. Olhando para trás, talvez o maior mistério em volta da figura de António Ribeiro tornado António Variações seja o modo como ele conseguiu alcançar tal peso na nossa cultura e tal sucesso.
Dizemos isto, pois é praticamente impossível encontrar outro como ele nas páginas da nossa História cuja viagem até ao sucesso marque um padrão entendível. Ele era um original e quase apetece ir buscar aquele cliché bolorento e descrevê-lo como alguém que viveu na era errada. No entanto, tal platitude em nada nos ajuda a entender como o cantor chegou ao sucesso. Pela sua parte, “Variações”, o filme, nem tenta explorar esse processo e mistério sociocultural. Pelo contrário, a primeira longa-metragem de João Maia deixa todo esse período na vida do artista fora da narrativa, perdido num corte abrupto e as palavras “três anos depois” no ecrã. Se queremos saber algo mais concreto sobre a vida do cantor, mais vale ir até à dúbia fonte de informação que é a Wikipedia.
Isso não é necessariamente prejudicial para o filme, é claro. Afinal, raro é o filme que consegue escapar à mediocridade quando escolhe seguir fielmente o modelo que Hollywood construiu para este subgénero do docudrama biográfico. Em artigos jornalísticos e perfis televisivos, essa parte da vida de Variações pode ser pesquisada pelos que se interessem. Um filme sobre esta figura faria bem em direcionar o seu olhar para a intimidade do seu protagonista, para as partes da sua existência que ficam fora da História oficial e conhecida por aqueles que já são seus fãs. O problema é que “Variações” também não é nenhum estudo de personagem particularmente incisivo.
Aliás, este é um filme mais facilmente definido pelo que não é do que pelo que efetivamente consegue ser. “Variações” não é uma história clássica contada ao estilo de Hollywood à la “Bohemian Rhapsody” ou “Walk the Line”. Apesar de vermos o cantor na infância e nos seus últimos dias, há um claro desinteresse em ver os seus anos mais icónicos. Também não é o tipo de retrato íntimo, mais focado na psicologia da pessoa do que na imagem do ídolo, que fez de obras como “Love & Mercy” exemplos tão bons do género. “Variações” é demasiado fragmentado e cronologicamente caótico para isso e demasiado superficial também, sendo que não prima pela complexidade psicológica. Escusado será dizer, também não é o tipo de história contida e unida por um tema concreto que vemos em “Amadeus”, por exemplo.
Sabemos mais sobre António Variações enquanto pessoa e enquanto cantor ao ver uma das antigas entrevistas de Júlio Isidro. Enquanto esforço biográfico, “Variações” é, portanto, um infeliz fracasso. Com isso dito, não se trata de um desastre total e a sua mediocridade é tão mais dolorosa pelos vislumbres de extraordinário potencial que trespassam por todo o filme. Tal grandeza, como é evidente, começa com as músicas geniais de António Variações que são aqui desconstruídas pela mão hábil de Armando Teixeira. Na banda-sonora, ouvimos esboços de algumas das obras mais memoráveis do cantor, ouvimos versões fora de ritmo e outras sem acompanhamento instrumental. Ouvimos Variações como nunca o ouvimos antes.
Ou melhor, ouvimos Sérgio Praia que aqui interpreta a personagem titular e é mais Taron Egerton que Rami Malek na medida em que canta todos os números do filme com a sua própria voz. Outro aspeto em que se assemelha ao Elton John de Egerton é o modo como o ator português não tentou desfazer-se em exercícios de mimetismo arqueológico. Por outras palavras, ele soa muito diferente de Variações, mas isso não rouba as canções da sua glória. Também a sua performance não é um reflexo exato da presença do cantor, mesmo fora dos palcos e do estúdio de gravação. Infelizmente, tais riscos interpretativos não têm uma estrutura textual à qual se agarrarem, resultando num retrato meio vago de António Variações, desprovido de interioridade.
Ele certamente sugere a imagem de Variações. De facto, todo o filme faz um ótimo trabalho a sugerir a estética do cantor e o mundo em que ele vivia. A terra natal dele é uma pintura bucólica de verdes brilhantes que quase ferem os olhos, enquanto a sua Lisboa é feita de clubes noturnos e apartamentos excentricamente decorados. Os figurinos são primorosos e a maquilhagem não fica atrás. Também as pessoas que povoam este mundo cinematográfico são pontos altos do filme, sendo que o elenco secundário é exemplar. Especial destaque tem que ser dado a Filipe Duarte e Victoria Guerra como Fernando Ataíde e sua esposa Rosa Maria, fundadores da discoteca gay mais importante da noite lisboeta – Trumps.
Diríamos mesmo que, se “Variações” se tivesse focado singularmente na relação entre o cantor e este casal, poderia ter sido algo bem próximo de uma obra-prima do género. A dinâmica entre os três é algo fascinante, sendo que Fernando nos é apresentado como um antigo amante de António, quiçá o amor da sua vida, enquanto Rosa nunca se reduz ao papel convencional da outra mulher ou da esposa traída. Quando Praia, Duarte e Guerra estão em cena, “Variações” ganha nova energia e ímpeto, ganha propósito, e ganha também uma carga sexual que está muito ausente no resto do filme. Este não é um exemplo de apagamento queer, mas deixa um pouco a desejar. Afinal, tirando o pavor de “Bohemian Rhapsody”, conseguem lembrar-se de alguma cinebiografia musical que fuja de tal modo à possibilidade de cenas de sexo?
Enfim, não desejamos, de todo, fazer com que “Variações” pareça um mau filme ou dissuadir potenciais espectadores de o irem ver. Há que se apoiar o cinema português e este é um projeto valioso, mesmo considerando as suas fragilidades. Nem que seja para ouvir a banda-sonora e apreciar alguns dos maiores excessos estilísticos do cantor, “Variações” já vale o preço do bilhete. Não se trata de uma justa tradução cinematográfica do génio de António Variações, mas é o que temos. Talvez alguém vá descobrir o cantor graças ao filme, talvez isto vá revitalizar a popularidade das suas músicas e lhes dar nova relevância. É melhor que nada.
Variações, em análise
Movie title: Variações
Date published: 24 de August de 2019
Director(s): João Maia
Actor(s): Sérgio Praia, Filipe Duarte, Victoria Guerra, Augusto Madeira, Teresa Madruga, Eric da Silva, Tomás Alves, Fernando Pires, José Raposo, Diogo Branco, Filipe Albuquerque, Miguel Raposo, Afonso Lagarto, João Nunes de Azevedo, João Melo
Genre: Drama, Biografia, Música, 2019, 109 min
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Cláudio Alves - 60
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Filipa Machado - 60
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José Vieira Mendes - 70
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Maria João Sá - 60
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Daniel Rodrigues - 55
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Maggie Silva - 80
CONCLUSÃO:
“Variações” é uma cinebiografia fragmentada e sem um esqueleto concetual a dar-lhe coerência temática ou dramática. Trata-se de um caso onde as partes são claramente melhores que o todo, nomeadamente o elenco secundário, os figurinos coloridos e a estupenda banda-sonora. António Variações merecia melhor.
O MELHOR: Duas cenas de concerto, uma no Trumps e outra em Amares, são pontos altos do filme.
O PIOR: Essas mesmas cenas de concerto mostram bem alguns dos maiores problemas de “Variações”. Nem no espetáculo, o filme se aproxima da interioridade do cantor, preferindo focar-se na reação da audiência e deixar o seu protagonista nas margens de planos gerais. É vagamente espetacular, mas é superficial e dramaticamente anémico também. Além disso, um dos mais esmagadores problemas do projeto são a sua fragmentação insana da cronologia da história. A certa altura, passam dois anos e parece que nunca saímos do mesmo dia.
CA
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De António Variações sempre se disse estar à frente da sua época. Este filme mostra-o logo no início: em 1956 está a ouvir na rádio um fado de Amália (“Povo que lavas no rio”) que só foi lançado em disco em… 1962 (LP “Asas Fechadas”, conhecido como “Busto”). Mas parabéns a Sérgio Praia, Filipe Duarte e Diogo Branco, este último algo esquecido nas críticas ao filme, mas corretíssimo nas suas várias intervenções ao longo do filme.
che2000@sapo.pt
Nunca se pode esperar que através de um filme se possa realmente ter uma ideia justa seja do que é que for. Vivemos numa sociedade do espectáculo com espectáculos dentro de espectáculos. Espectáculos que fazem dinheiro tal como foi magistralmente apontado por Guy Debord Sendo assim, acho que o filme é bom dadas as limitações, ainda para mais, de retratar uma “estrela espectacular” musical. Quem quiser saber mais tem de escavar. A biografia (livro) disponível no mercado é um bom começo. Ouvir as suas músicas e, nomeadamente, as letras das músicas é outro. Consigo perceber o ponto de vista do crítico do filme embora a ache completamente exagerada e, até de um certo ponto de vista, naif.
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