"Ready or Not - O Ritual" | © Big Picture Films

Ready or Not – O Ritual, em análise

Ready or Not – O Ritual” é a comédia de terror do ano, uma experiência doida de sátira social e carnificina catártica protagonizada por Samara Weaving.

A Amazónia está a arder, o fascismo está de volta em força e, desta vez, parece que não há uma única grande potência mundial disposta a fazer-lhe frente. Todos os dias, vemos como o ódio ganha, como a intolerância é rainha e novas oligarquias florescem onde antes se suponha vingar a democracia. Se, em tempos, era possível imaginar um futuro risonho, agora só se vê um poço sem fim de desespero e incerteza. Talvez isto sempre tenha sido assim e o que aconteceu é que o véu da ignorância está a ser violentamente arrancado da nossa vista. Nem os mais privilegiados se safam desta maldição de um novo olhar sobre um mundo virado de pernas para o ar. Em todo o caso, é difícil permanecer perpetuamente num estado de ignorância quando até os pulmões do mundo estão a arder.

A nível climático, o planeta está a caminhar a passos largos para um potencial apocalipse e, ao invés de desacelerar o processo, a Humanidade parece estar decidida a lá chegar o mais depressa possível. No meio disto tudo, as pessoas com mais poder e riqueza do mundo só atiram gasolina para as chamas da destruição global. Tais palavras podem denotar uma histeria niilista, mas luto seria uma palavra mais apropriada. Neste momento, pessoas por todo o mundo, até crianças, estão a desenvolver sintomas de depressão causados pela incerteza que sentem em relação ao futuro. Não em relação ao seu futuro enquanto indivíduos, mas o futuro do planeta e da Humanidade. A única alternativa à tristeza enlutada é a fúria, ou, pelo menos, assim parece ser. Quando caímos nas profundezas da frustração impotente face à desgraça que nos rodeia ou nos desfazemos em lágrimas ou explodimos com um grito de raiva.

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Pode parecer algo bizarro, mesmo doentio, mas é mais fácil viver aos gritos que em lágrimas. É essa mesma dinâmica, essa escolha, que encontramos no novo entretenimento escapista do século XXI. Outrora os melodramas de famílias ricas a viver em belíssimos sonhos de Arte Deco eram as fantasias que adocicavam a miséria da Grande Depressão. Agora, é sangue e vísceras, é vingança e sobrevivência, punição e justiça que nos embalam na sala de cinema e ajudam, por momentos, a deixar para trás o luto. Se antes se celebrava o glamour dos ricos, agora pega-se fogo ao seu legado e rimo-nos cobertos com o sangue daqueles que tentaram construir impérios à custa dos mais fracos. O musical e o romance eram o escapismo do passado. Agora, para escapar à realidade temos o terror que não nos magoa tanto e é mais fácil de entender do que aquele que aparece nos noticiários.

Por outras palavras, num mundo em que as únicas reações sensíveis e lógicas parecem ser choro ou gritos, o melhor entretenimento é feito de gritos em forma de cinema. Assim é “Ready or Not – O Ritual”, uma deliciosa sátira que conjuga humor negro com terror punitivo. Nesta história, que é tão mais doce pela sua perversidade, os realizadores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett apresentam-nos a uma jovem a celebrar aquele dia que, segundo as expetativas criadas pela sociedade, seria o mais jubilante da sua vida. Grace vai-se casar e o noivo não é qualquer um. Alex Le Domas é o herdeiro doirado de uma dinastia milionária feita à base de jogos de tabuleiro e equipas desportivas. Para Grace, uma órfã que nunca sentiu que pertencia a lado algum, mais importante que a conta bancária do noivo, quase mais importante que o seu amor, é a possibilidade de finalmente encontrar lugar no seio de uma família. Infelizmente, os Le Domas não são uma família à qual se deveria querer pertencer.

Tal como dita a tradição do cinema de género, o argumento de Guy Busick e Ryan Murphy usa simbolismo vistoso e metáfora retorcida para refletir as ansiedades do espectador. Aqui, a mentira da riqueza justamente ganha – o sonho americano – não é exposta como uma fachada que esconde injustiças sociais e questões de privilégio intrínseco. Pelo contrário, aqui a verdade emocional que o espectador pode trazer consigo é tornada em verdade narrativa. Estes milionários devem o seu dinheiro a um pacto com o Diabo e, sempre que uma nova pessoa se junta à família, há um ritual a ser feito sob o risco da aniquilação de toda a dinastia. Grace, portanto, acaba por ser levada a participar no ritual e tira uma carta de uma misteriosa caixa, ditando o jogo que ela e sua nova família irão levar a cabo nesta noite fatídica. Para seu azar, a carta é a mais temida, indicando que é hora de “jogar às escondidas”.

Ela lá se esconde e os Le Domas tentam achá-la com armas na mão e a intenção de sacrificar a noiva a Satanás. O novo marido desta plebeia, literalmente caçada pelas elites, mostra-se relutante a participar na carnificina ditada pela tradição e esse é o primeiro indicador que estas práticas têm vindo a deixar as suas marcas nos assassinos. Daniel, o irmão do noivo, é um caco humano que se anestesia a si mesmo com álcool e ódio próprio. Emilie, a irmã, vira-se para as drogas e parece um cachorrinho maníaco e homicida. Os mais novos, ainda na meninice, são psicopatas em treino, enquanto as gerações mais velhas estão enraizadas na malvadez familiar. Aqueles que se casaram com os membros do império e sobreviveram para contar a história orgulham-se do estatuto que ganharam e são os que menos misericórdia têm pelos que, em circunstâncias semelhantes, têm o azar de ser selecionados como os porcos para a chacina. Algo é certo, todos eles ora são monstros ou idiotas, ou ambos.

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O elenco é impecável a manejar as tonalidades insanas deste pesadelo tragicómico. Andie MacDowell, como a matriarca sulista do clã, é particularmente soberba a misturar um cocktail de conforto maternal com um travo de desumanidade. Com isso dito, “Ready or Not – O Ritual” é dominado por Samara Weaving como Grace. Muito ajudada pelo primor formalista que os realizadores conjuram, ela é uma ‘final girl’ instantaneamente icónica, uma personificação de uma Humanidade a tentar sobreviver à avarícia e ganância destrutiva de alguns dos seus membros. Ela é um conceito e é uma pessoa, ela engloba em si todo um discurso ideológico, mas nunca deixa de ser uma rapariga indefesa. Quando ela grita, o espectador sente o rasgar das cordas vocais na sua própria garganta. Quando ela grita, Grace grita por ela mesma, pela sua dor, e grita por todos nós. Quando sorri, dá-nos permissão para desfrutar da catarse sob a forma de um suspiro de alívio.

“Ready or Not – O Ritual” não é um filme subtil e muito menos um filme perfeito. O facto de esta fantasia escapista ser agora uma parte do império Disney deixa um gosto azedo na boca, um gosto a cinismo e comentário social feito em fábrica. O requinte formal e a economia da narrativa ajudam a estabelecer um ritmo preciso e estética agradável, mas fazem muito para tornar o filme numa experiência que nunca ousa desafiar o espectador. Não se pode esperar mais de cinema escapista, não que esses limites sejam necessariamente maus. Afinal, isto é uma comédia e está aqui para nos divertir. Muitos serão aqueles que irão olhar para os excessos sanguinários desta comédia de terror e acusá-la de mau gosto e tolice obscena. Tais críticas são válidas, só que, para quem está em sintonia com este tipo de género cinematográfico e crenças básicas, para a audiência ideal de “Ready or Not”, é precisamente isso que torna o filme em algo imperdível. “Ready or Not” é para aqueles que vivem aos gritos num mundo a arder.

Ready or Not - O Ritual, em análise
Ready or Not – O Ritual

Movie title: Ready or Not

Date published: 24 de August de 2019

Director(s): Matt Bettinelli-Olpin, Tyler Gillett

Actor(s): Samara Weaving, Mark O'Brien, Adam Brody, Andie MacDowell, Henry Czerny, Melanie Scrofano, Kristian Bruun, Nicky Guadagni, Elyse Levesque

Genre: Terror, Mistério, Thriller, 2019, 95 min

  • Cláudio Alves - 90
  • Catarina Novais - 80
  • Maggie Silva - 85
85

CONCLUSÃO:

Às vezes, faz bem sentir esperança e a fé na Humanidade com um filme como “Paddington”, por exemplo. Outras vezes, o que realmente precisamos é de uma noiva exausta, coberta de sangue e a fumar um cigarro enquanto o mundo arde à sua volta. Nós também estamos num mundo a arder, só que, ao contrário de Grace, a protagonista de “Ready or Not”, nós próprios estamos em chamas.

O MELHOR: Os gritos de Samara Weaving contra o mundo, contra aqueles que a querem matar e contra o casamento que a condenou a um pesadelo vivido de olhos abertos.

O PIOR: Em parte, devido à sua louvável economia narrativa, “Ready or Not” acaba por desleixar um pouco a dinâmica entre Grace e seu novo marido, o que retira alguma potência dramática às reviravoltas do final.

CA

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  1. Frederico Daniel 29 de Setembro de 2019

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