"A Vida Não É Um Sonho" | © MEO

Veneza em Casa | A Vida Não É Um Sonho

Darren Aronofsky, um antigo vencedor do Leão de Ouro, regressa ao Festival de Veneza com o seu novo filme – “The Whale.” Para homenagear o cineasta, recordamos a sua segunda longa-metragem, obra que o tornou famoso e valeu uma nomeação para o Óscar de Melhor Atriz a Ellen Burstyn. “A Vida Não é Um Sonho” também conta com Jared Leto, Jennifer Connelly e Marlon Wayans no elenco.

Obsessão, rituais, vício – estes são os temas transversais a quase toda a filmografia de Darren Aronofsky. Em “Pi,” sua estreia, considera-se um matemático fixado na ideia de encontrar o derradeiro e completo significado de pi. “O Último Capítulo” explodiu estas ideias numa vertente fantástica, delineando a busca pela árvore da vida, missão que consome a existência do mesmo homem ao longo de várias reencarnações. “O Wrestler” é um retrato de sonhos vencidos, a perpetuação de rituais antigos até que o corpo já não aguenta. Depois veio “Cisne Negro” e a procura pela inalcançável perfeição, o propósito divino de “Noé” e os ciclos ritualísticos de “Mãe!” Natureza.

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Nesta conjetura de preocupações cinematográficas, é o filme entre o matemático e o homem reencarnado que melhor e mais claramente expõe estas vertentes na obra de Aronofsky. Estreado originalmente em 2000, “A Vida Não É Um Sonho” poder-se-ia descrever, em jeito abstrato, como o conto de quatro figuras dependentes de rituais precisos, vícios insaciáveis que resvalam na obsessão à medida que as estações passam e o espírito definha. Harry é um toxicodependente cujo melhor amigo, Tyrone, e namorada, Marion, partilham a mesma adição. Os jovens sonham com uma vida melhor e tentam alcançar esse objetivo através das substâncias e sua euforia.

Ao mesmo tempo, a mãe de Harry, Sara Goldfarb, é uma viúva reformada que passa os dias a ver TV. Quando uma carta enganadora a convence que será convidada e participante num dos seus programas preferidos, a senhora ganha nova ambição. Numa tentativa de recuperar glórias passadas, ela quer replicar o aspeto que tinha numa das suas últimas boas memórias – a cerimónia de graduação do filho. Só que o corpo mudou e ela já não cabe no mesmo vestido vermelho. Desesperada, começa a tomar medicamentos para o emagrecimento, caindo na mesma espiral trágica em que Harry há muito se encontra.

Aronofsky trabalha com base num argumento adaptado a partir de um livro escrito por Hubert Selby Jr., crónica da decadência humana que também serve como conto moral, como advertência. Dito isso, caracterizar o filme enquanto trabalho moralista seria um erro. Mais do que um aviso para o mal das drogas, “A Vida Não É Um Sonho” vinga enquanto apelo à compreensão e empatia para com o toxicodependente, figura tantas vezes demonizada na retórica pública. Essa qualidade expressa-se na escrita, mas chega à sua apoteose no formalismo extremado que o realizador pratica, imergindo o espetador num jogo sensorial alternado entre choque e prazer.

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Nesse sentido, o cineasta usa os capítulos definidos pela estação como um guia de tonalidades. Em tempos de Verão, todo o mundo é uma possibilidade doirada, o otimismo é rei e tudo parece destinado a correr bem. O estilo da fita é um carnaval de técnicas iconoclastas, tendências estilísticas do cinema independente dos anos 90 levadas ao limite. Assim se transmitem ideias de reconforto artificial, a ambrósia da droga e sua fragmentação da mente. Pensemos no mosaico de intimidades entre Harry e Marion, no êxtase dela perante o espelho, no stress sonoro que Sara sofre com a dieta e sua transformação num frenesim energético quando os comprimidos entram em cena.

Quando a folha caduca cai e o mundo se decora com folhas secas, estamos perante um Outono de transição. A montagem deixa de ser somente um indicador positivo, dando lugar a um desnortear dos paradigmas. O ritual da droga, muito inspirado no “All That Jazz” de Fosse e sequências semelhantes em “Pi,” ganha uma potência demónica e as ideias de vida limpa depressa caem por terra. No Inverno, tudo o caos consome qual besta bíblica com um apetite sem fim. Tudo é frio e suado, a criatividade da câmara torna-se num desfile de imagens grotescas e o filme torna-se em puro terror. Até o frigorífico vira monstro e o celuloide é suporte do pesadelo.

É impossível resumir todos os truques e mecanismos em ação ao longo de “A Vida Não É Um Sonho.” O arsenal de Aronofsky é imenso e seus colaboradores são tão ou mais doidos que o realizador, cheios de ideias e conceitos experimentalistas. Matthew Libatique, o diretor de fotografia, é uma das estrelas da fita, abusando das grandes angulares para passar a ideia de uma realidade distorcida. Já muito elogiámos a montagem febril, mas fica aqui mais uma salva de palmas para Jay Rabinowitz. Clint Mansell contribui com uma banda-sonora icónica, enquanto Brian Emrich nos ataca os ouvidos com violentos efeitos, a sonoplastia feita besta raivosa.

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Por fim, é tempo de mencionar o elenco – quiçá o melhor em toda a carreira de Aronofsky. Todo o ator é sublime, mesmo aqueles nos papéis menores, com o quarteto principal a realizar desempenhos daqueles que definem o legado do artista. Marlon Wayans como Tyrone é todo ele um monumento de fisicalidade ruinosa, enquanto Jared Leto decalca o arco narrativo de Harry com horripilante intensidade. Jennifer Connelly jamais foi melhor do que no papel de Marion, explorando as vicissitudes mais tenebrosas da dependência. Apesar das cenas de degradação sexual serem mais famosas, são as conversas calmas que melhor mostram o talento da atriz. Ellen Burstyn, por sua vez, chega à apoteose como Sara, personificação do maximalismo estilístico do filme. Ela é um pesadelo em carne viva, o inferno das drogas exposto nu e temeroso, um milagre pérfido que nos desperta pena, medo e compaixão. Muito amamos Julia Roberts, mas Burstyn merecia o Óscar.

Podes encontrar e alugar “A Vida Não é Um Sonho” na MEO e no Apple iTunes.

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