"Caprice" | © MUBI

Veneza em Casa | Caprice

Joanna Hogg continua a sua longa colaboração com Tilda Swinton em “The Eternal Daughter,” um dos títulos na competição oficial do Festival de Veneza. Esta é a terceira longa-metragem que as duas amigas fizeram juntas. De facto, ambas começaram a carreira no grande ecrã ao mesmo tempo. Em 1986, a realizadora e a atriz fizeram “Caprice,” uma curta-metragem que serviu como tese final para Hogg.

Nos últimos anos, a cineasta britânica Joanna Hogg tem vindo a criar uma das obras acumulativas mais fascinantes da cena contemporânea. “The Souvenir” e sua sequela são um exemplo de cinema autobiográfica na sua vertente mais melancólica, evocativa, cheia de criatividade e devaneios em estilização aguda. Nesses filmes, a realizadora faz ficção da sua juventude, abordando uma relação tóxica no primeiro capítulo e o lavoro de uma primeira obra no segundo. São fabulosos retratos da realizadora enquanto mulher e artista cujas permutações pessoais transcendem aquilo que é aparente na narrativa.

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Até o casting dos filmes reflete uma intimidade extravasada em celuloide. Para interpretar a versão falseada da sua mesma pessoa, Hogg escolheu a afilhada, Honor Swinton-Byrne. A atriz é filha de Tilda Swinton, grande e antiga amiga da realizadora. Inclusive, foi Hogg quem descobriu a atriz quando, em 1986, a contratou para interpretar o papel principal em “Caprice.” Elas já eram amigas de infância, tendo sido colegas na mesma escola em que a Princesa Diana teve aulas. O resto é História, tendo Swinton se tornado num dos grandes nomes do cinema britânico, enquanto Hogg passou anos na TV antes de regressar ao grande ecrã no século XXI com uma trilogia onde outro ator revelação se estreou – Tom Hiddleston.

Contudo, rebobinemos de volta àquela curta tão marcante, esse ponto de génese na carreira de duas grandes artistas. Qual variação das aventuras de “Alice no País das Maravilhas” e “Através do Espelho,” a história do filme centra-se na viagem surreal de uma jovem transportada para um mundo mágico. Só que, ao invés de seguir um coelho com relógio de bolso ou mergulhar no reflexo, a heroína de “Caprice” encontra a passagem para outra dimensão nas páginas de uma revista de moda. É daí que vem o título, sendo “Caprice” o nome da magazine preferida da sujeita chamada Lucky.

Tantas vezes ela compra essa publicação que o vendedor de quiosque a recebe como um taberneiro felicita aquele cliente habitual que pede sempre a mesma bebida. Não que Lucky aparente ser uma fanática da moda e das novas tendências. Num gesto meio caricaturado, ela é uma visão de longos cabelos ruivos e olhos esbugalhados, óculos grandes e um figurino sem expressão ou personalidade. Sua odisseia pela revista leva a uma mudança de visual, uma gradual transformação da jovem em mais uma de tantas modelos em cenários inusitados. Ela passa de um tipo de anonimato a outro, expondo quão vazio o glamour pode ser.

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De facto, se há uma ideia basilar em “Caprice” é uma crítica ao consumismo dos anos 80 e ao modo como estas publicações feitas para o público feminino distorcem o modo como mulheres se consideram a si mesmas. Trata-se de uma mensagem simples, quase simplista, que existe principalmente como justificação para os jogos estilísticos que Hogg tem em mente para o filme. Apesar de criticar o superficialismo, “Caprice” é também uma celebração do espetáculo vácuo, amando o glamour no mesmo gesto em que o disseca. Os tons cómicos na performance de Swinton ajudam a unir conceitos antagónicos, mas é na conceção formal que a curta encontra seu máximo valor.

Naquele jeito típico de estudante, Joanna Hogg usa esta oportunidade para concretizar em cena as suas muitas influências cinematográficas, construindo cenários e cenas numa espécie de colagem. Há referências a inúmeros mestres, desde uma escadaria de Busby Berkeley a um corredor de braços estendidos que tanto sugere o “Cagliostro” de Wiene como “A Bela e o Monstro” de Cocteau, talvez até o terror em “Repulsa” de Polanski. O uso da cor garrida – ocasionalmente contrastada com o sépia, o preto-e-branco – serve para reforçar o sentido de falsidade jubilante. Também é uma carta de amor ao cinema de Powell e Pressburger, especialmente o espaço teatral abstrato presente em filmes como “Os Sapatos Vermelhos” e “Os Contos de Hoffman.”

Muito se apela aos musicais Technicolor dos anos 40 nesta repudiação do realismo, algo que ganha maior significado quando visto depois dos filmes “Souvenir.” Acontece que Hogg entrou para a escola de cinema com base no seu trabalho fotográfico sobre temas sociais, retratando a pobreza extrema em Sunderland. No entanto, seu background de classe alta fê-la sentir-se impostora, alguém a tentar contar histórias alheias que não compreende. Nesse sentido, “Caprice” surge como um exercício em insularidade radical, uma reconfiguração da obra enquanto reflexo introspetivo que rejeita a realidade alheia. Não faz isso em modo de exclusividade, mas como forma de autoconhecimento, quase autocrítica – até o nome Lucky (sortuda) parece uma piada sobre o privilégio destas mulheres, de Hogg e sua protagonista.

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Também o filme surge enquanto sopro de juventude, desafiando entendimentos de Hogg enquanto criadora de trabalhos austeros e intelectuais. Esta curta mirabolante é uma comédia acima de tudo, uma brincadeira que dança em torno das contradições inerentes a uma estudante feminista sentir-se atraída pela beleza das revistas, o luxo da moda, da cosmética. Até o espaço do estúdio reflete isso mesmo, conjugando cenografias em papel pintado com roupagens saídas de coleções de alta-costura. É o contraste entre a costura robusta e um papier machê pronto a romper com qualquer passo em falso. No fim do dia, “Caprice” é um bacanal de júbilo cinematográfico, jovial e maravilhoso, visionamento essencial para quaisquer fãs de Tilda Swinton e Joanna Hogg. De facto, é essencial para quaisquer fãs de cinema.

Podes ver “Caprice” exclusivamente na MUBI. Na mesma plataforma, podes encontrar outros filmes de Joanna Hogg – as longas-metragens “Unrelated” e “Exhibition” com Tom Hiddleston.

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