"Citizenfour" | © Leopardo Filmes

Veneza em Casa | Citizenfour

Laura Poitras é uma das realizadoras de documentários mais aclamadas da atualidade. Este ano, ela compete na Seleção Oficial de Festival de Veneza pela primeira vez, com “All the Beauty and the Bloodshed” sobre a artista Nan Goldin e seu ativismo contra a família Sackler. Até hoje, o filme mais conhecido da cineasta é “Citizenfour,” grande vencedor do Óscar para Melhor Documentário em 2015.

Inicialmente, Laura Poitras não pensava seguir uma carreira em cinema. Sua primeira paixão foi a culinária e até trabalhou em restaurantes com ambições de se tornar chefe. Contudo, encontros com cineastas experimentais como Ernie Gehr, acabaram por lhe mudar o rumo da vida. Em 1989, já ela se aventurava na colaboração cinematográfica, participando na composição do filme-poema “Renga.” Dito isso, Poitras só se estrearia no campo da longa-metragem já em pleno século XXI – “Flag Wars” é um documentário corealizado por Linda Goode Bryant que examina o problema da gentrificação na cidade de Columbus, Ohio.

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Logo aí se verificou como o interesse de Poitras se centrava naquela periclitante intersecção do cinema e política, jornalismo e arte de mãos dadas com o espírito ativista. Apesar de boas críticas e um percurso vitorioso por vários festivais, “Flag Wars” não seria a obra a colocar Poitras no mapa. Esse filme foi “My Country, My Country,” uma poderosa exploração dos efeitos da guerra no Iraque, abordando a temática através do testemunho civil face à ocupação Americana. Apesar de uma nomeação para os Óscares, nem toda a atenção que o documentário recebeu foi positiva ou benigna.

Anos depois do acontecimento, Laura Poitras viria a revelar como havia sido investigada e monitorizada pelo Governo dos EUA, seu nome colocado em listas suspeitas que causaram inúmeros problemas ao atravessar fronteiras. Não obstante a intimidação estatal, Poitras continuou a investigar a Guerra ao Terror e as ações dos EUA no Médio Oriente com a sua terceira longa-metragem, “The Oath.” À medida que se ia enterrando em informação sinistra, a realizadora começou a focar as suas atenções nas políticas de vigilância que agências governamentais americanas faziam cair sobre seus mesmos cidadãos e outros civis fora dos EUA.

Seguindo a filmografia de Poitras, podemos constar como estas temáticas se tornaram no foco principal da realizadora. Entre 2011 e 2013, a realizadora assinou três curtas sobre o assunto, como que ensaiando aquele que seria o seu trabalho mais marcante, aquela obra seminal que lhe garantiria o nome na história do cinema. Acontece que, em Janeiro de 2013, a documentarista recebeu uma mensagem encriptada, enviada por um misterioso sujeito que se autonomeava Citizenfour. Estas comunicações levaram à cumplicidade com Edward Snowden, um trabalhador do NSA pronto a divulgar os segredos e ilegalidades da agência Americana.

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Mais tarde, nesse mesmo ano, Poitras fez parte da pequena equipa escolhida a dedo por Snowden para receberem e partilharem as suas informações secretas. A realizadora, o colunista Glenn Greenwald, o jornalista Ewen MacAskill do The Guardian, e Snowden, encontraram-se num hotel em Hong Kong. Durante quatro dias, Poitras documentou as reuniões do quarteto, negociações e escolhas arriscadas, as primeiras leaks de Snowden, mantendo o seu anonimato. Ao quinto dia, o delator fez pública a sua verdadeira identidade. Doze dias depois, Snowden sai de Hong Kong, mas o seu passaporte é apreendido, desamparando-o em Moscovo, onde pediu asilo político temporário.

Tudo isto, Laura Poitras filmou, juntamente com várias entrevistas a Edward Snowden e material adicional sobre o impacto da investigação sobre as vidas de Greenwald e MacAskill. Tais materiais formam a base de “Citizenfour,” obra que, segundo a realizadora e seus estudiosos, marca o fim de uma trilogia que também inclui “My Country, My Country” e “The Oath.” A importância histórica e política do trabalho é impossível de negar, suas revelações tão monumentais que podemos realmente dizer que Poitras teve mão numa palpável mudança de paradigmas. O mundo não é o mesmo desde que a câmara fitou Snowden pela primeira vez.

Mas é claro que um documentário não conta só pelo seu valor enquanto objeto jornalístico, enquanto exposé de insidiosas verdades escondidas. “Citizenfour” vai mais longe que isso, contudo, afirmando-se um feito com relevância audiovisual, um triunfo cinematográfico que vai além do delato gravado. O modo como Poitras aborda a figura de Snowden, por exemplo, representa um paradoxo que tanto perplexa como deleita. A história de “Citizenfour” não é o perfil da personalidade titular, mesmo quando esta o puxa nessa direção, qual estrela com titânica força gravitacional. Há por isso uma tensão na perspetiva autoral. Há uma clara vontade de reduzir Snowden a uma não-entidade por detrás da informação.

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Além disso, “Citizenfour” também é um espetacular exemplo de como Laura Poitras traz as tonalidades do cinema narrativo ao seu trabalho documental, desenvolvendo imensa paranoia bem ao estilo dos thrillers de outros tempos. Sua mestria imagética faz-se sentir especialmente em dois pontos – imagética e montagem. Vejam-se as passagens finais do filme, suas possibilidades apocalípticas de um mundo consumido por sombras noturnas, Snowden visto agora em enquadramentos distantes, quase voyeurísticos. Para se entender o milagre da montagem, pensemos naquele instante inesquecível, quando o telefone toca e todos sustêm a respiração – inclusive a audiência que vê este magistral documentário.

“Citizenfour” encontra-se disponível no catálogo da FILMIN Portugal. Podes fazer streaming gratuito do filme se fores assinante do serviço, ou alugá-lo caso não sejas.

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